Macrorelacionamento: o mito
Sábado à noite. Ando na rua e vejo uma garota chorando falando com seu namorado pelo orelhão, ao mesmo tempo um casal passa sorrindo ao meu lado e eu me pego pensando nela, querendo ligar para ela. Depois do evento, chego em casa e encontro meu amigo e a namorada. Os rostos mudam, as configurações variam, os enredos parecem inéditos, mas nós todos somos infinitos reflexos dentro do caleidoscópio amoroso.
Variação sobre um mesmo tema, manifestação de um mesmo arquétipo, uma história de amor está para o amor assim como a maçã que comi ontem está para a própria idéia de maçã. Curiosamente, assim como não posso mastigar a idéia de maçã, o amor precisa de uma história específica para ser vivido, comido, engolido. Uma melodia transcende o timbre dos instrumentos que a tocam, mas ela em si mesma, sem timbre algum, nada é.
A grande metáfora que transpassa um enredo amoroso é, na verdade, um mito. E eles são vários. Rubem Alves ensina que um mito é uma “estória” (sem “h”) que “nunca aconteceu para que possa sempre acontecer”:
“Romeu e Julieta, A Bela adormecida, Cinderela, Édipo, Amor nos tempos do cólera, A terceira margem do rio, O operário em construção: essas estórias não aconteceram nunca. Mas a despeito disso queremos lê-las de novo, e todas as vezes que as relemos elas acontecem.” (Alves, 2004)
Estória sem “h” pois a eternidade não chega a tocar no tempo histórico. Ela permanece suspensa. O tempo surge em nossa inútil tentativa de alcançar a eternidade. Mas a eternidade não é um tempo infinito, sem fim, e sim a própria ausência de tempo, o atemporal, o instante sempre presente. O tempo é o ornamento da eternidade, o único modo possível de ela viver a si mesma. Portanto, não é fugindo do tempo que chegaremos à eternidade, mas adentrando-o ao máximo.
Ao se envolver com alguém, preste atenção ao mito que se desenrola. Conscientes do mito, vivemos mais, exploramos mais, fazemos o outro mais feliz. Há histórias que são como a de Lóri, personagem de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (Clarice Lispector): uma mulher descobre o prazer e a autêntica alegria sob a condução de um sábio professor de filosofia. Há histórias que são o oposto: é a mulher que desperta o homem. Outras surgem da proximidade do fim, como aquele casal que se conhece em um asilo e vive um grande amor dias antes da morte.
Nossas histórias de amor não nos pertencem. Devemos entregá-las, vivê-las como que oferecendo todas as experiências e emoções ao além de nós. Ainda que seus, os erros não são seus. Ainda que suas, suas alegrias não são suas. Ofereça tudo ao mistério. Descubra o mito de sua relação e viva-o!
Olhe fundo nos olhos de qualquer mulher e você verá não vários, mas um só ser, uma só mulher arquetípica. Primeiro você verá Lóri, ou Julieta, ou Cinderela ou a velhinha do asilo. Mas se aprofundar o olhar, você verá Shakti, a energia dinâmica que produz toda a dança do universo. Converse com sua mulher como se ela fosse Shakti assumindo aquela forma particular, aquela mente, aquela voz, aquela pele. Não faça amor com sua mulher apenas, faça amor com Shakti, pois sua mulher deseja se tornar inteiramente Shakti, do mesmo modo que Shakti um dia desejou nascer como sua mulher.
Olhe fundo nos olhos de qualquer homem e você verá Shiva, a consciência impassível, o espaço no qual tudo acontece, o grande palco no qual Shakti faz sua performance. Converse com seu homem como se ele fosse Shiva assumindo aquele corpo particular.
Shiva deseja e se fascina pelo brilho, radiância e energia de Shakti. Shakti se apaixona e anseia pela presença, liberdade e profundidade de Shiva. Olhe agora para sua parceira e respire o brilho, a radiância e a energia que emanam desse corpo específico. Abra-se agora para seu parceiro e repouse na presença, na liberdade e profundidade que só ele possui. Sem vocês, Shakti e Shiva perdem uma possibilidade de amor, uma noite de prazer. Sem vocês, o casal supremo briga em pleno sábado à noite de lua cheia, e termina dormindo em camas separadas. Por favor, viva cada detalhe de sua relação a partir do grande mito e faça-os felizes…
(continua em breve no post “Microrelacionamento: o detalhe”)
aguardo a continuação …
Após ler o texto, confesso que fiquei com uma enorme curiosidade! rs
Por acaso, você depois de ter terminado de escrever:
“Por favor, viva cada detalhe de sua relação a partir do grande mito e faça-os felizes…”
pegou o telefone e ligou para ela???
🙂
Não. Se ligasse, não estaria vivendo o mito (por incrível que pareça).
[…] do post “Macrorelacionamento: o mito“) quando eu vi você tive uma idéia brilhante foi como se eu olhasse de dentro de um […]
Incrivel essa leitura….sentir este olhar sobre o amor e a própria existência da vida….como um ciclo e um intercêmbio dialético de energias….espero poder viver o outro lado deste mito em breve…(minha namorada me largou a pouco tempo dizendo que eu “era bom de mais pra ela”)…mas tudo bem…Forte abraço!
[…] o macrorelacionamento do mito e o microrelacionamento do detalhe, mais importa o segundo, a expressão, a explosão viva do que […]
[…] Assim começa a música “You and Me” (Dave Matthews Band). E assim deveria começar uma relação. Não exatamente como humanos que andam em ruas de concreto e ficam 8 horas diárias olhando para pixels oscilantes numa tela, mas como personagens dos filmes e mitologias que escolhermos para nós. […]
[…] o outro. Só o corpo é capaz da verdadeira poesia: dizer aquilo que de fato se quer dizer. Entre o macrorelacionamento do mito e o microrelacionamento do detalhe, mais importa o segundo, a expressão, a explosão viva do que […]
Captei a desconstrução do mito, mas me perdi na idéia de Shiva e Shakti… Como seria esse conceito de amor a dois atemporal e impessoal também sem as balizas da identidade de gênero e da orientação sexual?
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Professor de TaKeTiNa
Colunista da revista Vida Simples
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