Pelas frestas: conexões humanas e suas microhistórias – Parte 1
Ouça enquanto lê: Josh Rouse – Streelights.
Se pudéssemos espreitar por entre as frestas de um relacionamento, sem acesso à ampla história, com olhares microscópicos, em uma escala reduzida de tempo e espaço, o que encontraríamos?
Um abraço
“Cada uma de nós podia sentir o cheiro do xampu da outra e os sabões em pó que tínhamos escolhido, e eu senti pelo cheiro que ela não tinha fumado, mas alguém que ela amava tinha, e ela pôde sentir que eu era grande, mas não geneticamente, não em parmanência, só até que encontrasse de novo meu caminho. As asperezas de nossos jeans se prenderam uma à outra e nossos peitos trocaram suas histórias cansadas, lendas sobre serem super ou subutilizados, abundância e escassez e deixa pra lá, vamos em frente. […] Era romance. Não do tipo de se apaixonar, mas a troca de ar entre nossos ombros e peitos e coxas.” –Miranda July, em É Claro que Você Sabe do que Estou Falando
Há abraços inesquecíveis por serem detalhadamente lembrados, como esse da Miranda, e existem também os abraços inesquecíveis por serem totalmente impossíveis de lembrar. Não porque eles não acontecem ou são ruins de algum modo, mas justamente porque são excessivamente aguardados e então interrompem nossa consciência enquanto ficamos suspensos e projetados ao corpo do outro.
“Qual era mesmo o cheiro dela? Será que ela encostou a mão na minha nuca? Chegou a me beijar o rosto? Eu passei os braços por cima ou por baixo? Quanto tempo durou? Por que parece que não chegou a acontecer?”
Passaram a noite toda juntos. Esperar pelo filme, ver o filme, comentar o filme, andar pela rua, entrar em um café, sair do café, entrar no metrô. E o abraço. Rápido, repetido sem jeito, passageiro, vagão. Mas ao contrário de um transporte, não foi um abraço de passagem, não levaria a outro movimento – nem beijo, nem despedida. Sem segundas intenções, os dois só queriam repousar um no outro. Era abraço de destino.
Quando o poeta diz abraço, não é mais do abraço que ele está falando. Do mesmo modo, como uma obra de arte, aquele abraço era falta, lacuna, espacialidade vazia que logo preencheriam com seus desejos e imaginações. O abraço não foi para que todo o resto pudesse ser.
Um olhar
Enquanto ela brinca de armário, escolhendo vestidos, lenços, colares, brincos e arrumações de cabelo, ele fica ali, deitado na cama, olhando, enquanto finge uma leitura filosófica. Não é qualquer olhar, porém. É assombroso e contemplativo, perigoso e doce. Às vezes ela espia de canto de olho e se surpreende com a enorme curiosidade que vem dele. Aquilo não é humano, ou melhor, pelo jeito que olha, ele deve estar pensando que ela não é humana! Os ensinamentos budistas dizem que não somos humanos, que somos a liberdade de ser humano. Talvez ele seja budista, talvez ela. Ou talvez os budistas estejam corretos e eles não precisam praticar meditação para serem humanos além do humano.
Ela observa no espelho se a roupa está bonita, se as cores combinam, se o colar se adequa à blusa. Ele olha para a curva do quadril que aquela blusa revela, para o colo que o lenço esconde e ele deseja, para a cara linda que ela faz enquanto fica na ponta dos pés simulando um salto alto. Ela sabe que está sendo olhada. Ele sabe que ela sabe que está sendo olhada. Ela sabe que ele sabe que ela sabe que está sendo olhada. Os meta-prazeres não tem fim… E eles também sabem disso.
Dedos
Ele era louco e ela não sabia. Sua química cerebral se assemelhava a de uma pessoa saudável, exceto quando decidia explorar novas formas de conexão humana. Depois do primeiro encontro, ele notou que mal lembrava das mãos dela. Dedos que movimentavam o hashi, levantavam o copo de sakê, afastavam os fios de cabelo que lhe invadiam o rosto. O tempo todo à mostra, invisíveis. Dedos que passaram despercebidos, sem história para contar. Imaginou então que, se ela chegasse perguntando com as mãos para trás “E meus dedos? Como são?”, ele não passaria no teste. Não saberia o que falar.
No segundo encontro, ele se propôs a focar os dedos dela, como se ela fosse só dedos flutuando no espaço, vendo um filme, comendo um kebab, tomando um suco. Logo essa imagem lhe pareceu um pouco desconfortável e ele preferiu manter o corpo todo, mas em relação aos dedos: em vez de flutuarem no espaço, agora eles tocavam sua coxa no cinema, deslizavam pelo corrimão, orelha e boca, entravam e saiam de uma bolsa gigante, fugiam do ar frio dentro do cachecol e, poucas vezes, encostavam no braço dele.
Ela achava que ele estava um pouco distraído à mesa. Mente esvoaçante, talvez. Ele se esforçava para que ela não percebesse sua tara inventada do dia pra noite. O treino do olhar deu certo: os mesmos olhos cirúrgicos que apontavam para os dedos passaram também, sem querer, por todas as partes do corpo. Ele queria menos, mas a levou inteira para casa, com dedos e tudo. Da próxima vez, não será necessário direcionar o olhar. Tal intencionalidade vai para os próprios dedos, dele.
Depois de abrir bem os olhos, será inevitável fechá-los.
Olá,
É a primeira vez que comento aqui. E faço isso apenas para parabenizá-lo pelo texto. Ficou muito legal, bem escrito e cativante. Parabéns e continue com sua escrita. Ela ainda fará diferença na sua vida, e terá grande importância na dos outros.
Grande abraço
Monthiel
Apertem os cintos! Tem gente que não precisa de binóculos.
[…] Se pudéssemos espreitar por entre as frestas de um relacionamento, sem acesso à ampla… […]
Ahhhh os detalhes. Apenas um abraço diz mais que uma discução inteira.
Apenas uma troca de olhar já entrega todo seu jogo.
Por favor, se apeguem a detalhes
Olá!
Sempre xereto aqui, mas é a primeira vez que comento.
Adorei o texto e a música deu o toque final. Incrível e perfeito.
“Depois de abrir bem os olhos, será inevitável fechá-los.”
Tão perfeito isso…
Parabéns pelo site (qdo crescer quero ser assim!rs)
bjs
Talvez seja pela música, mas depois de ler a parte do olhar, não consegui pensar em mais nada.
Revivi tudo que passei enquanto eu lia aquela parte.
É, não volta mais.
Belo post.
Eu tinha vontade de fotografar pros seus posts.
(isso é o elogio máximo que uma pessoa pode receber de mim, sinal de que deu tesão ^^)
=*
texto altamente sexy ou eu que tenho a mente pervertida?
carolina ,tu é arrogante hein ?
se gostou , era só dizer ,não tinha que se achar .
ou esta história é pra conhecer melhor o gustavinho ?
ai, adorei.
me levou a encontros já idos, braços, unhas, nuca, olhos abertos, bem abertos.
não há melhor abraço do que aquele que trocamos – enquanto dava, também recebia!
Sim. Abraços inesquecíveis pela simples vontade de se abraçar. Conexão inexplicável sem toques, sem beijos, sem segundas intenções. Só aquele momento, não se saberia nem direito onde, se não fosse o barulho do trem, passando pelos trilhos.
O cheiro dela? Raspberry. Ela passa a mão pela sua nuca, vira seu rosto e lhe dá um beijo desajeitado. Os braços dele, pela cintura, revelaram um abraço gostoso. E durou tempo suficiente para se querer mais.
Parece que não aconteceu pois a vontade de teletransportá-la foi confundida com o momento real pelo qual ambos estavam passando.
Passaram a noite juntos. Não viram o tempo passar. Após um dia de tarefas, restou um pedido na lista de vontades a ser realizado. Aquele abraço, vontade de ficar lá por mais tempo se não fosse a hora. Sem beijo. Despedida? Ao menos sem querer se despedir. Simples conexão inexplicável.
Um olhar… diz tudo.
Os dedos. No primeiro encontro, ela capricha em suas mãos. Ele simplesmente não as enxerga. No segundo encontro, ela vai ao acaso, mãos sóbrias. Ele somente as enxerga. Seus dedos compridos, de quem um dia arriscou tocar algum instrumento de teclas, hoje apenas dançam. Por seu corpo todo, rosto, cabelo… simplesmente dançam, não conseguem parar. Se movimentam. Assim como seus pensamentos. Que ela luta para poder controlar a cada minuto. Desconcentração.
Ele segura suas mãos? Os dedos se movimentam. Quem sabe um dia.
Streetlights fez parte de sua trilha sonora hoje. Um dia atípico, andando pela Avenida Paulista. Distante, mas em companhia dele. Nas palavras de Fernando Pessoa: “As vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”.
com certeza, sexy!!!!
“Ele era louco e ela não sabia. Sua química cerebral se assemelhava a de uma pessoa saudável, exceto quando decidia explorar novas formas de conexão humana.” Essa é uma das idéias mais lindas que já vi! Me sinto tão reconfortada com seus textos, e esse merece lugar de destaque nos meus favoritos. Com certeza sexy (2)! Depois de iniciar com o abraço nem consegui prestar mta atenção no resto. Abraço pra mim tem status de preliminar preferida… preliminar de encontro de almas, corpos, corpos e corpos…
Não sei o que dizer…
só sei que é a mais pura verdade…
fico maravilhada com suas observações…
suas colocações…
felicidades
Humm…
Vi duas belas cenas que dariam um roteiro por aqui! 😉
Sempre lembro das pessoas pelos sentidos, sinestesia pura: o cheiro do gosto da pele depois do banho, a cor do gosto da boca beijada aii aii…
bjinhos e bom final de semana!
Dias atrás havia um cara na paulista com uma placa pedindo um beijo.
Adoro abraços, mesmo que aconteçam com estranhos.
Finalzinho de tarde de sexta-feira no trabalho, muito cansaço, a chuva ameaçando chegar em Brasília depois de tantos meses, o barulho dos carros saindo da Espalanada, antes de desligar o computador uma passadinha rápida no Blog do Gitti e… prendi a respiração!!! O post me renovou. Com certeza o final de semana terá um começo melhor do que antevia. Agora só penso em abraços e mãos e olhares, etc. rs
Adorei, e reconheci o Gustavo em vários trechos. Internet tem isto: a gente se sente íntimo das pessoas sem ao menos conhecê-las pessoalmente.
Bom final de semana a todos!
detalhes…..hum….importantíssimos. Fazem toda a diferença!
abraço é a melhor coisa do mundo.
…e é engraçada essa sensação que eu tenho toda vez que leio um texto teu. a sensação que meu desejo já se realizou.
[…] primeira parte, observamos um abraço, um olhar e dez dedos de movendo. Abaixo, continuamos nossa […]
“Emocionante, fascinante, livre, delicado, agradável… e muito inerente à natureza feminina que só grandes homens com o seu dom, a sua percepção conseguem desvendar..” Parabéns Gustavo
[…] beijos que tecem uma relação. Se pudéssemos acompanhar casais de verdade, não idealizados, e espreitar por trás do beijo cinematográfico, quais outros encaixes de boca […]
a única coisa q tenho a dizer é q este post é perfeito.
gostei muito do abraço
alguns pequenos detalhes… caracterização perfeita…. sem duvida sexyyy
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Professor de TaKeTiNa
Colunista da revista Vida Simples
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