Pelas frestas: conexões humanas e suas microhistórias – Parte 2

por Gustavo Gitti 24 setembro 2008 16 comentários

Eu espelho

Ouça enquanto lê: Dave Matthews Band – Grace is Gone.

Se pudéssemos espreitar por entre as frestas de um relacionamento, sem acesso à ampla história, com olhares microscópicos, em uma escala reduzida de tempo e espaço, o que encontraríamos?

Na primeira parte, observamos um abraço, um olhar e dez dedos se movendo. Abaixo, continuamos nossa exploração…

Uma respiração

Ela já tinha notado, à distância, a respiração dele. Não chegava a ser profunda ou forçada demais, nada que se destacasse. Notou um desvio no septo e até uma dificuldade em puxar o ar. A boca aberta, mais do que o normal, deveria estar inspirando aquilo que as narinas não conseguiam.

Assim que começaram a conversar, a respiração seguia, leve e densa. Às vezes ele se reclinava para trás na cadeira e sorria inspirando… ar? Era isso: sua profundidade existia pelo jeito que ele respirava, não pela quantidade de tempo e ar em cada tragada de vida.

Agora, noite de terceiro encontro, ela ainda está um pouco intrigada, sem entender bem por que prestou tanta atenção à respiração dele nos primeiros encontros. Ele a enlouqueceu, não no sentido sexual, mas porque a fez realmente considerar a hipótese de que é possível respirar com os olhos.

A conversa, porém, ignora qualquer hipótese e vai ganhando aquela aura de primeiro beijo. Ele se aproxima, olhos no olhos, sorrisos contidos e só: fica ali, a exatos 1,2 centímetros do rosto dela, por exatos 3,7 segundos, imóvel. Ela, cheia de graças e movimentos a noite toda, pára, congelada. Ele inspira forte e profundo, ela acha que ele está sentindo seu perfume, ele sequer nota o perfume, ela se preocupa se está com um cheiro gostoso, ele se preocupa em continuar inspirando. Um pensamento a invade: “Talvez ele não esteja respirando ar algum, talvez ele esteja me respirando”. Ela se atrapalha e não percebe seu corpo desrespeitando os exatos 1,2 centímetros.

Beijo.

Enquanto move cabeça, lábios e língua, imagina a respiração dele percorrendo-a inteira, dos pés à nuca. E conclui enfim que ele nunca tinha beijado, olhado ou conversado com ela: apenas a respirara para dentro.

Um espelho

Os elogios eram parte de uma prática espiritual. Sua motivação era olhar o outro de um modo elevado, focando as qualidades positivas e encarando as negatividades como obstáculos à liberdade do outro, não como algo inerente a ele. Mas ele dificilmente fazia isso sem orgulho ou acreditando mesmo nas palavras que dizia.

O fato era que, ao elogiá-la naquele domingo, ele acreditou e não se orgulhou. Por um momento, teve a certeza de que os elogios não vinham dele, apenas refletiam as qualidades dela. Ele ofereceu de presente aquilo que ela já tinha. E essa alegria improvável o fez continuar. Pela primeira vez, se aproximou de uma mulher sem tentar oferecer nada. Não levou filosofias, ingressos para peça ou show, vinho ou passos de dança… Ele estava vazio.

Para sua surpresa, ela agia como se estivesse, de fato, recebendo algum presente que ele não conseguia enxergar. Porque ele não trazia nada, ela vinha com tudo. Ao apenas ficar, ele deixava que ela falasse, desfalasse e se enrolasse toda. Ela se complicava, se embaraçava… e ele se deliciava com ângulos de reflexão, com jeitos de projetar sua luz em várias direções. Sem querer e sem nada afirmar, ele a apresentou para si mesma.

Continua…

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16 comentários »

  • Daniel

    Esse microscópio está ainda mais profundo.

    Lindo: Ações da dupla em movimento. Respiração adentrando respiração.

    Já se viu entre dois espelhos em paralelo? Os reflexos vão ao infinito. A gente consegue ver os reflexos ao inclinar os espelhos ou imaginando-se invisível. Mas, a gente está ali no meio. No meio dos reflexos a caminho do infinito. É bem gostoso se perceber invisível pra ver isso.

    Os que se amam:
    “So much as I love you.
    Where you end, where I begin”

  • Carol

    “…sem querer e sem nada afirmar, ele a apresentou para si mesma.”
    Trecho lindo, me identifiquei muito com ele. To gostando demais desses textos. Essa segunda parte está mais leve e doce ainda.

    beijo

  • Cami

    Intrigante.

  • Bel

    Gutti,

    Faz um tempo (exatamente 3 posts) que não me dou o prazer de visitá-lo
    mas fique tranquilo que foi um lapso momentaneo….voltarei aos velhos e bons hábitos… porém já me mantive atualizada do que anda acontecendo por aqui

    A primeira vez que visitei seu bolg, li uma frase interessante, no minimo intrigante para mim, e que ainda não me fizera, era algo mais ou menos:vc andando em plena paulista e se de repente alguém pegar na minha mão? É a quebra do racional-logico e esperado….volta e meia eu penso nisso…as “microhistórias” mexem com uma parte desse imaginário não impensado, mas acredito que não percebido….

    Gostei muito dos detalhes, de sentir cada palavra como se de fato pudéssemos nos transportar pra o “ela”ou o “ele” e entender o que encontramos entre cada fresta…

    “Se pudéssemos espreitar por entre as frestas de um relacionamento, sem acesso à ampla história, com olhares microscópicos, em uma escala reduzida de tempo e espaço, o que encontraríamos?”

    ……………………………

    Muito bom Gutti….
    Seu blog me faz sentir bem….

  • Xana

    adorei!

  • Ka

    ….que coisa boa….lindo, continue…rs

  • Carolina Vianna

    Nossa… a gente se vê dentro da história… arrepiante.

  • NBS

    Não há como ler esse texto sem pensar em RannyBaby do Zeca Baleiro….e…
    Sem ficar à “Flor da Pele”… e sem perder o fôlego.
    Grande sacada….

  • Ninha

    Nossa, me trouxe lágrimas aos olhos!

    A análise das micho-histórias está perfeita… o gostar, o admirar, o querer bem, não vêm apenas dos grandes gestot, pra mim, vêm dessas micro-histórias… o jeito de olhar, de pegar a mão, de acariciar… Quando você sente que o outro faz parte de você… ainda que momentâneamente.

    Lindo, simplesmente lindo!

    Bjos!

  • Jazz

    Oh… parece que Deus deu uma parada na chegada de doadores aqui no hemocentro só pra que eu pudesse ler este texto com atenção. Eu me vi no texto, como se lembrasse de situações de há (nossa!) sete anos atrás. Foram dois nos respirando, sentindo, refletindo outra pessoa e eu entendo bem o que queres dizer.

    São sensações raras, inigualáveis, mas que ainda trazem a esperança de serem revividas, com outra pessoa.

    *suspiros*

    @Daniel

    Comentário perfeito o seu.

  • Jazz

    dois anos*

  • fabi

    Gustavo, seu coração, ao que parece, aprende rápido e melhor – aplica rápido as lições aprendidas…
    melhor pra gente, que ainda tem o privilégio de assistir na primeira fila o avanço rápido da sua alma tão humana e tão…masculina! beijo

  • Ninha

    Nossa, acabei de assistir Outono em Nova York… a música que passa nos créditos é linda.. Beautiful da Jennifer Paige…

    I’m looking for a way to feel you hold me
    To feel your heart beat just one more time
    I’m reaching back, trying to touch the moment
    Each precious minute that you were mine
    How do you prepare, when you love someone this way,
    To let them go a little more each day?

    The stars we put in place
    The dreams we didn’t waste
    The sorrows we embraced
    The world belonged to you and me
    The oceans that we crossed
    The innocence we’ve lost
    The hurting at the end
    I go there again,
    ´cause it was beautiful.
    It was beautiful.

    Some days missing you is overwhelming
    When it hits me you’re not coming back
    And in my darkest hours, I have wondered
    Was it worth it for the time we had?
    My thoughts get kinda scattered, but one thing I know is true
    I bless the day that I found you

    The stars we put in place
    The dreams we didn’t waste
    The sorrows we embraced
    The world belonged to you and me
    The oceans that we crossed
    The innocence we’ve lost
    The hurting at the end
    I go there again,
    ´cause it was beautiful.
    It was beautiful.

    [musical bridge]

    The rules we stepped aside
    The fear that we defied
    The thrill of the ride
    The fire in our hearts that burned
    The oceans that we crossed
    The innocence we’ve lost
    The hurting at the end
    I go there again,
    ´cause it was beautiful.
    So beautiful.
    It was beautiful.

    Bjs

  • Ludmila

    Nossaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa…
    nem acreditei quando li…
    apesar de sempre dar uma passada aqui e ler..
    hoje a leitura me tirou da rota diária,
    colocou um sorriso no meu rosto…
    e alegrou meu coração em um dia complicado…
    muito obrigada pela oportunidade…
    continue assim…
    beijos

  • Lucinda

    concordocom a ludmila… colocou sme duvida sorrisos no meu rosto… me deixou com uma sensação diferente…e essa musica é otima …parabens beijos

  • Georgia Prado

    Parabéns , você é uma das raras pessoas que possuem o dom da escrita, é como assistir a um filme cena após cena,e pensar seria bom se não tivesse fim…Além disso você conhece muito a respeito da maneira de ver e sentir feminina, isso te torna alguém especial…Amei .

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