O amor é filme

por Gustavo Gitti 3 fevereiro 2008 21 comentários

Tela de cinema

“O amor é filme
Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama
Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica
Da felicidade, da dúvida, dor de barriga
É drama, aventura, mentira, comédia romântica”
Lirinha, letra da música “O amor é filme”, do Cordel do Fogo Encantado, trilha do filme Lisbela e o Prisioneiro

A Myla me enviou o curta-metragem abaixo (J’Attendrai Le Suivant, de Philippe Orreindy) e me obrigou a escrever sobre como o amor é ficção. Assista e depois continue lendo.

Uma história de amor é como uma obra de arte: totalmente desnecessária, inventada e bela. Desnecessária, pois poderíamos não ter enviado aquele email e continuado com nossa vida tranqüila. Inventada, pois nossa declaração de amor nunca deixa de ser forçada, nunca esconde por completo a fantasia que a sustenta. Bela, porque… bela. Por mais fechados que possamos estar, basta uma música como “C’etait ici”, de Yann Tiersen (que fez a trilha do excelente O fabuloso destino de Amélie Poulain), para nos mostrar que amor e beleza são uma e mesma coisa. Ouça enquanto lê e me diga se discorda. A propósito, conheci o Tiersen pelos ouvidos da Myla.

“Era só um sketch, o ator diz assim que ela sai do trem. E nós não somos diferentes. Fazemos performances e lançamos nosso charme em todas as direções. Ao contrário do desfecho do curta, tudo o que queremos é ver alguém acreditar em nós, para que nós mesmos acreditemos também. O brilho no outro confirma a fantasia que construímos e nos permite brilhar também. Alucinação compartilhada é realidade.

E então o outro desce do trem e nos puxa junto. “Você tem certeza disso?”, um pergunta ao outro. “Você é louco!”. Eles se duvidam e seguem por uma série de testes de realidade e sanidade, até que o amor ficcional se estabilize como uma realidade a ser mostrada a amigos e parentes. “Eu te amo” é o selo final, o atestado de realidade que tanto buscamos. Pelo “Eu te amo”, os olhos do outro nos conferem existência e substância – pelo outro e no outro, eu finalmente existo.

O melhor da arte é ser vivida como realidade. Não entramos no cinema para ver um filme – isto é, a ficção não nos interessa como ficção. Entramos pela experiência de realidade que vamos percorrer, pelas emoções que vão brotar, pela abertura, pela textura real que aquele espaço oferece. Quando ouvimos “Eu te amo”, confirmamos aquilo que nós mesmos sabíamos ser possível, entramos enfim no filme que vinhamos escrevendo para nós mesmos. Afinal, temos muitos roteiros, scripts e sketches prontos. Muito material não filmado, vida não vivida.

Ao encenar nossos sketches e aguardar por um brilho diferente, na verdade estamos abrindo nosso cinema a quem quiser viver aquela fantasia como realidade. “Não, eu não amo você, mas posso fingir e ambos acreditarmos nisso. Não, eu não conheço você, mas posso conhecer e ambos acreditarmos nisso. Não, eu não sou feliz, mas posso fingir e ambos acreditarmos nisso”. Já ao adentramos o cinema do outro, dizemos: “Eu sei que você não é tão belo assim, mas posso fingir e fazê-lo ser”. Ora, tal capacidade de envolvimento não é senão uma capacidade para o fingimento. Sim, amor é coisa de artista. E por que não dizer que arte é coisa de quem ama?

Uma história de amor é também, como uma obra de arte, um percurso, uma viagem. A ficção nos libera da factualidade, do destino, da solidez dos eventos e da rigidez de nossos comportamentos. Nosso parceiro projeta um outro em nós e a partir desse personagem começamos a agir diferente. Nasce o percurso, a transformação, a aprendizagem. A paixão irrompe quando o outro abre um caminho, oferece uma história e vê em nós algo que ainda não somos. Se amor é filme, cantada é trailer.

O que se desenrola a partir daí é sonho, movimento incessante com trilha sonora de Tiersen. O desdobramento real de tudo aquilo que sequer nos era possível imaginar. E quanto mais realidade passa por nossa boca, mais essa textura de sonho permeia nossa vida. Um bom amor pode transformar nossa vida inteira em filme e nos liberar do peso das coisas, da concretude que tanto nos aflige.

E o beijo. Queremos engolir o outro, levantá-lo, tirá-lo de dentro de si. E o sexo: depois de vermos o trailer do filme que o outro nos oferece, dizemos “Sim! Pegue na minha mão e me conduza por isso tudo” ou “Sim! Eu quero levar você para todos esses locais”. Eu não apenas projeto algo nela, mas ao levá-la para cama, sussurro: “Eu vou acabar com você e não vou descansar até que você se sinta tão bela quanto só eu sei que você é”.

Somos cinemas ambulantes. Na fachada de nós, qualquer um pode ler: “Ofereço histórias de amor. Entrada gratuita”.

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21 comentários »

  • Dr. Love

    Se você não fosse meu parceiro na Cabana, diria que é uma lady. Como te conheço além disso, diria que é um cyber-poeta pós-moderno viciado em posts feitos pra seduzir suas leitoras.

    Um orgulho pra raça.

  • Poetriz

    É que como no curta, quando estamos sozinhos somos impulsionados a acreditar em toda e qualquer ilusão. Desde as falsas promessas até nos amores difarçados de amizade…

    Lindo texto, devo avisá-lo que o “copiei” dando-lhe os devidos créditos e link, para que venham se deliciar nesse seu excelente blog…

  • Sérgio

    O amor é um filme de produção barata onde os protagonistas nunca estão satisfeitos com seu papel.

  • Alê

    “Sim, amor é coisa de artista. E por que não dizer que arte é coisa de quem ama?”
    Muito bom!

    Adorei seu texto. Os filmes, assim como o amor, são incríveis instrumentos de auto-conhecimento e transformação.
    Minha trilha seria Aimee Mann.

    Como disse Neruda: “Estamos aqui no meio do deserto, perdidos nessa noite escura, sedentos por uma chuva de beijos”

    P.S: Acho que concordo em parte com o Dr. Love, talvez seus posts sejam suas sketches… E por que não seriam, não é?

  • Fellipe

    “(…) quando estamos sozinhos somos impulsionados a acreditar em toda e qualquer ilusão. Desde as falsas promessas até nos amores difarçados de amizade… (…)”

    Certíssimo. Com esse texto passo a entender em parte a razão de um namoro de apenas 4 meses não ter durado tanto.

    Não encenamos nossas sketches. Não fomos idiotas o bastante. Acreditamos nesses amores, mas um não via o outro como amante, apenas como amigo.

    É. Mais um motivo pra mim ter que entrar na cabana

  • Sah

    “Olhe fundo em meus olhos e entre!”

    A busca por alguém que “nos torne” aquilo que, potencialmente, já somos (e não sabemos ‘como’!), às vezes é tamanha que disparamos sketches sem a menor censura. Oferecemos estórias de amor carentes de enredo..inventamos dramas, e por outro, enriquecemos tb nossa história.

    Adorei o texto! Amélie Poulain é um filme encantador!

    Um grande abraço.

  • Tonobohn

    Cantada é trailer, dessa gostei. É um elevator pitch, um CV entregue à empresa que você imagina que gostaria de atuar, esperando que haja vagas. E sempre há vagas para os que mostram potencial rss

    Mas não seria esse um dos principais motivos da frustação num relacionamento? Você compra aquela imagem, aquela ficção, acreditando na veracidade e que todo o restante do filme será tão fabuloso quanto os flashes principais mostrados no trailer.

    Contudo, não acredito nisso: “Um bom amor pode transformar nossa vida inteira em filme e nos liberar do peso das coisas, da concretude que tanto nos aflige”. Nesse ponto, estou mais com Raul Seixas – “pois ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez”.

    Não creio que um amor, uma pca seja suficiente para alcançar aquilo que todos os filósofos da história sempre tentaram desvendar como alcançar: a felicidade. Buscar essa pca que traga a felicidade prometida no trailer do filme é utopia, não é lá que devemos procurar e sim na nossa própria peça/filme/história.

    “No outro, eu finalmente existo” – entendo o que quer dizer, mas como já disse em outro textos, não costumo olhar para as pessoas que amo como muletas 🙂

    Gitti, como sempre, mandou muito bem. Concordando ou discordando de você, seus textos são sempre muito bem-vindos!

    abraço

  • Era só um sketch… « Poetriz

    […] o vídeo e uma matéria super interessante no blog Não Dois, Não Um do Gustavo Gitti que vale a pena […]

  • myla

    “De ares e asas não percebo nada. Mas atravesso abismos e um vazio de avessos para tocar a luz do teu começo.” – Hilda Hilst, Sobre a tua grande face.

    (citação descoberta pelos olhos do Gitti)

  • Wagner Fontoura

    “Ofereço histórias de amor. Entrada gratuita”.
    Ainda quero, um dia, poder dizer que faço minhas as suas palavras. Mas “não me afobo, não, que nada é pra já. O amor não tem pressa, ele pode esperar, na posta-restante, no fundo d um armário, milênios, milênios no ar…” (Chico, adaptado e pego emprestado).

  • Lucia Freitas

    Todos nós oferecemos histórias de amor, com entrada gratuita. No entanto, discordo de ti meu anjo. A gente não abre a fantasia (quando abre, não rola, acho). A verdadeira história de amor, grátis e cheia de doce e fel, vem de conhecer outros mundos, novas paisagens, outras músicas. A tal da diferença… não é não?
    De qualquer jeito, é sempre um prazer ler teus posts – e os comentários, e as respostas.

  • Thiago

    Texto genial, novamente.
    Frases como ‘Se amor é filme, cantada é trailer.’ ou “Somos cinemas ambulantes. Na fachada de nós, qualquer um pode ler: “Ofereço histórias de amor. Entrada gratuita”.” são dignas dos maiores pensadores, gênios como La Rochefoucauld, Oscar Wilde ou Machado de Assis..

    Algum dia, numa era longínqua, e não antes disso pretendo amar alguém.

    Eu aprecio e acredito veenentemente na seguinte frase:
    ‘Amor não se conjuga no passado. Ou se ama para sempre ou nunca se amou verdadeiramente.’

    Dita esta, digo que o amor não existe.

    //Espelhando – http://www.spfc.net/blog

  • J.

    Já dizia Cazuza…

    “a gente inventa para se distrair”

  • Daniel

    Gustavo ou Myla, postem um endereço alternativo do curta citado… ou o nome e referências…. 🙁
    (não tá mais disponível no youtube)

    hehehehe

  • jemima

    è..realmente Gitti é fantastico e os posts são realmente pra encantar e seduzir quem lê..
    Adorei o vídeo, os coments, tudo.

  • Larissa

    Acabei de encontrar seus textos por acaso. A imagem de “um beijo roubado” me atraiu e fui lendo um atrás do outro. Deliciando-me. Adorei os temas, as seleções musicais e cinematográficas. Parabéns!

  • Juliana

    Mais uma leitora seduzida

  • Uma mulher e suas áreas intocadas | Não Dois, Não Um: Um blog sobre relacionamentos lúcidos

    […] Assim começa a música “You and Me” (Dave Matthews Band). E assim deveria começar uma relação. Não exatamente como humanos que andam em ruas de concreto e ficam 8 horas diárias olhando para pixels oscilantes numa tela, mas como personagens dos filmes que escolhermos para nós. […]

  • Paco

    Hahaha. Dr love é Phoda.

  • Keke

    Que texto!!! Cheguei a arrepiar neste trecho “Eu não apenas projeto algo nela, mas ao levá-la para cama, sussurro: “Eu vou acabar com você e não vou descansar até que você se sinta tão bela quanto só eu sei que você é”.

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