Feast of Love: “O fim já está desde sempre no princípio”

por Gustavo Gitti 6 fevereiro 2008 12 comentários

Feast Of Love - Banquete do Amor

– Como posso mudar? Não posso passar por isso outra vez. Harry, juro por Deus, perderei a cabeça.

– Merda. Bradley, ouça. Você deve ficar alerta, atento.

– O que quer dizer?

– Bem, tudo o que devemos saber está sempre diante dos nossos olhos. Sim, nós temos ilusões, esperanças e as pessoas podem nos cegar. Mas o fim já está desde sempre no princípio.

– Kathryn disse que eu nunca a vi. Talvez nunca tenha visto a Diana, também. Eu só estou à procura de um pedaço de felicidade, então fecho os olhos e pulo.

– OK, então da próxima vez…

– Não pulo?

– Não, não. Pule! Pule, mas de olhos abertos.

Eu levantei a bola desse filme (Feast of Love | O Banquete do Amor) há um tempo e hoje finalmente assisti (veja o trailer). Minha única crítica se aplica também à maioria das produções que saem de Hollywood: poderia ousar mais e ainda se manter no mainstream. Ainda assim, o diálogo acima vale pelas duas horas. O diálogo e as deliciosas Radha Mitchell (de Melinda e Melinda) e Alexa Davalos (que eu não conhecia).

Desde o início, me identifiquei com o grande Morgan Freeman (Harry). Também me sinto velho, observador, curioso e apaixonado pelas relações humanas. Sua conexão com a esposa é bastante natural para mim, como se eu já estivesse ali. Aquele carinho e cuidado com ela… Amor de repouso.

Ao mesmo tempo, sou o sempre tolo Greg Kinnear (Bradley). Por várias vezes, tive a sensação de acordar de um sono muito longo: “O que eu fiz nesse tempo todo?”. Acordava tarde – fisgado pela dor – e olhava para o lado. Uma trilha de lágrimas frescas indicava que ela tinha acabado de sair. Abria um pouco mais os olhos e os móveis já não estavam no quarto.

Sonolento, desatento, olhos semi-cerrados. “Por que eu não tomei um banho frio, bati na mesa, gritei ou chorei? Por que eu não a agarrei enquanto ela era minha? Por que eu não acordei antes?”. Ao passar por bares, motéis e restaurantes, imaginava as noites não vividas e sofria. “Por que não a trouxe aqui? E neste? Por que não reservei, por que hesitei?”.

Há ainda uma cegueira maior, retratada pelas duas histórias frustradas de Bradley no filme. Não ver o outro, suas necessidades e movimentos. Depois do fim, lembro de ter olhado fundo nos olhos dela e dizer: “Há quantos meses eu não olho fundo nos seus olhos?”. É dessa cegueira que o filme fala, cegueira de olhar fundo.

Estamos tão dentro de nossas próprias histórias! Você encontra um amigo e ele só fala de si mesmo. O tempo todo, sem pausas. Sua amiga liga e só quer saber de contar suas histórias interessantíssimas. Você não agüenta, já que suas próprias histórias são bem mais intensas, não é mesmo? Acordamos, nos olhamos no espelho e lá estamos nós e nossos dramas, todos reencenados a cada minuto – não tanto para os outros quanto para nós mesmos.

Feast Of Love - Banquete do Amor

Para verdadeiramente se conectar com um outro, é preciso sair de nossa própria história. Abandonar o papel principal para descobrir qual papel coadjuvante temos no enredo dos outros. E isso é uma diversão! Se de fato fôssemos personagens, isso seria uma perda de tempo ou algo contraditório. Como nós somos atores, qualquer personagem apenas nos enriquece. É uma outra lógica, já que estamos acostumados a inserir todos e cada um como personagens dentro de nosso roteiro.

Abandonar nosso autocentramento, sair de si, voltar os olhos ao outro… O espírito apaixonado de Bradley é a própria cura para sua sonolência, mais até do que a sabedoria de Harry.

Durante a paixão, acompanhamos cada gesto. Nossos olhos brilham de atenção. Sentimos a respiração do outro, antecipamos movimentos, perguntamos, olhamos. Há um genuíno interesse, uma espécie de curiosidade que se empalidece com o tempo. Sem falar na generosidade… Somos capazes de ouvir histórias que duram horas, ir buscá-la em outra cidade, esperar. Tudo sem hesitação, com toda a energia e estabilidade do mundo. A paixão nos deixa vivos, nos acorda, faz brotar o melhor de nós.

Ultimamente venho pensando se a paixão não nos ensina mais sobre o amor incondicional do que o chamado “amor puro”. A paixão nos tira de nós mesmos, quebra nossa rotina, suga nossa energia e ainda nos deixa com todo o ânimo do mundo. Se liberada do apego, ela não seria o melhor que o amor pode ser?

Se é verdade que o fim já está desde sempre contido no princípio, o nascimento também já pode ser encontrado na morte – não depois, mas durante. Good times, bad times… Em meio a picos ou depressões, olhe bem. Permaneça atento, alerta. Está tudo aí, completamente disponível, exposto. O outro, você, as sementes de uma futura briga, o início de uma nova paixão, renascimentos da relação, pontos de contato, blindspots, traições, términos, retornos. Tudo.

Por mais que acordemos, vez após outra, de sonos sutis quase imperceptíveis, por mais que nos esforcemos para estar atentos, nós vamos falhar completamente. Com tudo visível, algo passará desapercebido e será justamente nesse detalhe que vamos tropeçar. Luzes acesas, despertadores e lembretes diários não serão suficientes. Nós vamos cair no sono.

O mergulho. Eis o que nos resta. Sem imaginar paisagens de felicidade, nós vamos abrir os olhos para ver a escuridão do abismo. A vertigem, a adrenalina da queda e a dor dos impactos. É isso que vai nos tirar da sonolência, de novo e de novo.

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12 comentários »

  • myla

    há pouco tempo fiquei me perguntando algo parecido e vi q via errado. a maioria d nós entende a convivência como amiga e inimiga. d início, é ultra bem-vinda pq é nela q a tessitura das paixões e dos amores é feita e, se rotineira, é ela apontada como a principal vilã da mornidão dos relacionamentos. da insatisfação do casal.

    só q ando vendo q talvez o diferencial não esteja no fator convivência. e sim na atitude – q é o q seu txt bem discute.

    se um cara vê a amada com olhos despertos, a convivência perde sua importância no tempo e ganha predicados na intimidade, já q essa é uma das maiores delícias da vida a dois.

    a gente sabe q se acostumar e passar a tomar as coisas for granted é super fácil. qdo as perdemos, na maioria das vezes recaimos em um misto d arrependimento e tortura. por que não fiz isso, por que não disse ou fiz aquilo, eqto ainda era tempo… – q nem seu txt fala.

    quem cultiva os olhos abertos entende q há sempre espaço pro novo, p descobertas e por si só se torna apaixonável e se abre a se apaixonar all over again. torna-se lovable all the way up and all the way down.

    e, concordo, se “o fim já está desde sempre no princípio”, a gente só perde aquilo q nunca nos foi nosso. bom, mais aí seria assunto p um outro post, né?!

    gostei demais desse post e dos caminhos q vc sugere p a paixão. tem muita luz nesse fim d tunel. 😉

  • Thiago

    Devo dizer que seu texto foi cirúrgico. A perfeição foi como a de uma incisão em um momento delicado de uma operação.

    Manter os olhos abertos é algo difícil para a maioria das pessoas e como a myla disse, no subconsciente vemos as relações como amigas/não amigas.. Elas podem evoluir e passar a ter intimidade-ou não.

    Acredito que no momento em que passamos a ver tudo com outros olhos e saber ?ou tentar? exatamente o que podemos dar/receber em cada relação, nos tornaremos mais abertos a tudo e poderemos ‘acordar da sonolência’.

    Belo texto, fiquei com vontade de assistir ao filme..

    //Expelhando – http://www.spfc.net/blog

  • Thiago

    PUTZ EU ESCREVI ESPELHANDO COM X. Espero realmente que caia uma pedra de 10 toneladas sobre mim nesse momento, eu mereço!

    P.S. interessante o jeito como a myla mistura português com inglês nas frases.

  • Mirian Bottan

    “Com tudo visível, algo passará desapercebido e será justamente nesse detalhe que vamos tropeçar.”

    Quando eu era mais nova, se acontecesse de tropeçar no meio da rua, numa pedra qualquer, minha primeira reação era olhar pros lados e conferir se alguém tinha visto a cena tosca. Isso depois de praguejar, morta de vergonha, claro.

    Talvez tenha sido depois de muito observar outras pessoas tropeçando, e perceber o quão patéticas se pareciam ao agir dessa mesma forma, ou talvez eu tenha me cansado de sentir o peso que a vergonha e a raiva causam, considerando que eu tropeço pra caralho… enfim.

    Só sei que um belo dia, sem mais nem menos, depois de um tropeço TOP, eu parei… e gargalhei. Saiu assim, natural, enorme, abraçando o mundo. E eu me senti maravilhosamente bem.

    Algumas pessoas riram comigo, e não havia desaprovação em seus olhares, apenas parecia que haviam absorvido um pouco daquele sentimento que eu acabei soltando, meio que sem querer.

    Infelizmente, algumas pessoas não aceitariam sequer faísca daquele momento que estava sendo compartilhado, e é possível que andassem uns bons metros tentando encontrar na cena algo do que pudessem debochar.

    Nesse meio tempo, é provável que tropeçassem por conta da distração, e não podendo rir de si, seriam elas mesmas motivo do deboche alheio.

    Felizmente, tudo se move em círculos. E sempre dá tempo de aprender a tropeçar, ou pular de olhos abertos, que seja.

  • Tonobohn

    Ok, preciso assistir esse. Pelo menos pra ver a Radha Mitchell e a Alexa Davalos 🙂

  • myla

    encontrei no caderninho uma citação do Deida q joga um pouco d luz a essa discussão:

    love wants to come thru you most in the styles you want to express the least. otherwise, you would already be living utterly spontaneously, gifting the world thru your true purpose, without inhibition or doubt, while always letting go as unfettered – liberta, irrestrita – openness. deida, i.e., p. 133.

    “love wants to come thru you most in the styles you want to express the least.”

    talvez seria esse um jeito d entender as raízes da mornidão, da sonolência. talvez.

    o interessante é q dá pra pôr à prova, testar, experimentar.

    “you suffer because you have so far refused to open as every style of love”. aqui, perhaps, o antídoto contra a sonolência, a techné dos olhos bem abertos.

    associações, mas q se dá pra ganhar corpo, sentir a diferença, intuir e auferir. hehehehe, às vezes sinto q somos todos um grande lab.

  • srta. rosa

    Mmmmm… anotado o filme pra eu ver. Já me ocorreu colar bilhetes na porta da geladeira e no espelho do banheiro; mas eu também me acostumaria à idéia de que eles estão lá e com o tempo também não os leria mais.
    enfim, paradoxos…

    volto depois que vir o filme.

    bjbj

  • Sah

    Banquete do Amor. Mais um para minha lista!rs..

    É verdade, concordo. Nós sempre caímos no sono… e o amor tá aí pra nos acordar. Eu acho que o amor é como a respiração: vc pode amar(como respirar) sem se dar conta, mas no momento em que vc presta atenção, torna-se melhor, mais intenso e profundo e portanto, mais revigorante.

    O melhor que o amor pode ser é existir sem pedir nada em troca. O amor precisa amar… e definitivamente, apego não rima com amor.

    Um abraço!
    ps. ah, estou te linkando Gustavo. Posso?!rs..

  • Linguagens do amor (1) - O toque passional | Não Dois, Não Um: Um blog sobre relacionamentos lúcidos

    […] (Trecho de “Feast of Love: o fim já está desde sempre no começo”) […]

  • Jazz

    Comentário nada a ver com o texto: Morgan Freeman é tem o olhar mais sexy do cinema. Falei.

  • Daniel

    Como é bom reler esse texto a cada princípio!

  • Paulinha Costa

    Eu adorei o filme, assistiria mais vezes. Foi bom demais ler seu texto.
    Realmente condiz com a descrição do blog, lúcido, muito lúcido.
    Fiquei em estado de graça, obrigada viu?!
    Vai para os favoritos,
    bj

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