Meu corpo sobre a inveja
Ele faz facão duplo, sai em peão contínuo e conduz um elástico. Eu não.
Filosofia com corpo. Expliquei e iniciei essa proposta nesse post sobre arrependimento. Na verdade, estou seguindo uma tradição que começa em Espinosa, passa por Nietzsche e atravessa Merleau-Ponty, Reich, Lowen, até dar nascimento a esse texto delicioso de Francisco Varela, no qual ele descreve sua experiência ao receber um fígado: “Intimate Distances: Fragments for a Phenomenology of Organ Transplantation“. Em 2001, Varela morreu de hepatite C.
Mas não é do Varela nem do Richard Gere que eu sinto inveja. Na academia de dança de salão, somos em 10 bolsistas, 5 homens e 5 mulheres. Cada um passa cerca de 11 horas semanais auxiliando e aprendendo nas aulas. O ambiente solto faz com que esses momentos sejam divertidíssimos. Estou lá desde o início de 2006 e virei bolsista no fim do mesmo ano. Semanas antes dessa convocação, entraram dois caras que só sabiam forró. Tinham facilidade para aprender e logo foram chamados também.
Com um deles, a relação é ótima. Ele dança muito mais que eu, só que não o invejo tanto. O outro, por algum motivo que até hoje me é desconhecido, deixou de falar comigo. Se me aproximo, ele se vai. Se tento cumprimentar, ele desvia o olho e apenas estende a mão. Sua namorada atual é uma garota com quem eu já tinha me envolvido. Mas sabe quando você não faz idéia do que fez, tenta perguntar, se humilha um pouco para resolver, e nada? Pois bem, deve ter sido uma cagada homérica a minha!
Justo esse cara é o aluno number one de toda a academia. Além de nossa coreografia de tango, ele vai apresentar uma outra de salsa no fim do ano. Domina gafieira como nenhum outro bolsista, sabe os passos de dama também, pergunta, fica no pé dos professores. Nos intervalos, ele aproveita para aprender um passo novo. Eu fico de canto, deixando crescer inveja, raiva e impotência. São três movimentos bem específicos e destacados. Não sei se já ocorreu com algum de vocês… Eu me sentia incapaz disso. Orgulho e preguiça, sim. Inveja, nunca!
A inveja sobe, meu corpo se inclina em direção à cena, os pensamentos se resumem a “Eu queria ser esse cara!”. A raiva vem a seguir e me domina. O corpo se enrijece. Ora se posiciona para bater em um invisível outro, ora desfere ataques contra si mesmo. Os pensamentos planejam uma vingança sutil, uma manifestação de revolta, uma conversa com o dono da academia, um email, uma vontade de desabafar que logo se reprime: “Não, nada disso… Inveja, eu? Nunca!”.
Assim que a raiva perde o vigor, a energia em baixa torna-se o espaço perfeito para o crescimento da impotência – se é que podemos chamar de crescimento. O resto de energia, que poderia ser usada para algum aprendizado naquela direção, se volta contra meu corpo e o empurra para baixo. O pensamento, quase inexistente, é assim balbuciado: “Eu nunca conseguirei ser aquele cara”.
Eu me inclino em desejo, me debato em indignação e enfim me encolho em depressão. É assim que o corpo soletra a palavra inveja.
Depois de mais uma noite de dança, chego em casa irritado. Uma simples inveja desalinha tudo. Qual o sentido em jantar? Para que atualizar o blog, fazer algum site ou responder emails? Não, eu não quero ver mais um filme. Não, hoje eu não vou meditar. Sexo? Que graça tem? A saída imediata, claro, é dormir. Essa tem sido minha escolha, afinal amanhã é outro dia e somos todos humanos mesmo!
O problema é que eu fui fisgado, assim como Truman pelos olhos da única figurante que não encenava. Como Neo, por Trinity e Morpheus. Ser fisgado por algum tipo de sabedoria significa nunca mais poder dormir tranqüilo. Nunca mais esperar pelo amanhã que é outro dia, aguardar o tempo que cura ou apelar para os pecados da humanidade. Agora não me sobra alternativa senão avançar sobre meu cadáver, dobrar meus limites, ir até o fim da inveja. Até onde ela nos leva?
Dou continuidade aos três movimentos. A inveja inicial me coloca dentro da cena, aprendendo um novo passo no intervalo das aulas. Melhor participar do que observar. Já a raiva simula todos os possíveis cenários. Eu brigo com ele, me revolto na frente de todos, converso com o dono, abandono a academia. A melhor alternativa é a mais óbvia: aprender. A impotência revela um pensamento que substitui a desistência: “E daí se eu nunca conseguir?”.
A mesma impotência que doía, agora como abandono, nos libera do medo do fracasso. Eu era impotente porque orgulhoso: “Se não for para ser perfeito, melhor nem começar”. Ora, toda inveja esconde uma falta de coragem. É mais cômodo desejar do que mudar. Haveria algo mais precioso do que nossos medos?
Meu corpo brinca um pouco mais com os pensamentos. Sou o dono da academia. Agora sei muito mais do que aquele que invejo. Posso sentir sua curvatura, a plasticidade, a sustentação lúcida de cada movimento. No pouco tempo que passo sendo esse outro corpo, me surpreendo com a ausência das coisas que antes eram naturais. Sinto falta de amar, de respirar fundo, de sentir ritmos, cadências, padrões de pulsação que sempre fluíam aqui dentro. Esse corpo não toca bateria! Mesmo sendo o objeto de minha inveja, continuo com a mesma ansiedade, a mesma contração de antes. Então eu passo a desejar meu corpo anterior…
No excelente Blue Truth, David Deida ensina: “Jealousy points to your false hopes of fulfillment” (a inveja aponta para suas falsas esperanças de satisfação). Cada vez que invejo meu amigo, sustento a crença de que dançar muito bem me fará feliz e completo. No dia em que eu for o mestre da dança de salão, aí sim vou ganhar muito dinheiro, poderei conquistar qualquer mulher, serei famoso, reconhecido, amado. Aí sim serei livre! Deida nos instrui a usar a inveja como um lembrete de nossas fixações, um diagnóstico preciso dos locais onde nos refugiamos, oásis imaginários para onde se projetam nossos corpos.
A inveja não precisa ser curada por depuração terapêutica (“Por que você acha que sente inveja dele?”). Podemos usar sua energia do jeito que vem e conduzi-la em outra direção. O antídoto para o corpo que inveja é uma alegria especial cuja única causa é a alegria dos outros. O outro lado da inveja é a ação de alegrar-se com o outro.
“Ao contrário da sabedoria popular, que afirma como verdadeiros amigos aqueles que se mostram presentes na hora da necessidade e na da dor, é muito mais difícil ficar do lado de quem está comemorando uma vitória do que daquele que precisa da nossa ajuda. É o que sugere Nietzsche no parágrafo 499 de Humano, Demasiadamente Humano (1878) ao associar amizade não à capacidade de “sofrer com” (Mitleid), mas sim de “alegrar-se com” (Mitfreude). Para Nietzsche, a compaixão esconde um excessivo enamoramento de si mesmo, como se só fosse possível confirmar a própria força diante de alguém que está frágil e dependente. A compaixão é parente da inveja.” –Charles Feitosa
Você perde, o outro vence. Ele não é outra coisa senão você mesmo passando pela experiência de vencer. Você não é nada além do que ele mesmo vivenciando a derrota. Ambas as sensações são impessoais. O corpo dos vencedores se excita do mesmo modo. Os gestos de todos os perdedores formam uma única coreografia. Entretanto, você perde esse espetáculo no instante em que se fecha e voluntariamente sai do palco. A inveja é essa observação à distância.
Não é maravilhoso que pelo menos alguém esteja ganhando? Atente para o fato de que pelo menos um humano nesse momento está tendo um orgasmo, surfando em Bora Bora ou sorrindo com o fechamento da Bolsa de Tóquio. Vocês conseguem senti-los? Diante da morte, tudo surge como um milagre. Vocês não ficam felizes ao saber que todas essas experiências vão seguir nos corpos e mentes de desconhecidos outros?
Alegrar-se com a alegria dos outros não é algo apenas para iluminados. É a única atitude que responde uma pergunta essencial: “Como nos manter abertos, felizes e alegres se não temos absolutamente nenhum controle sobre o que nos acontece?”. Se depender de sucessos pessoais, nossa alegria flutuará junto com a Bolsa ou com os ânimos de uma mulher em TPM. No entanto, se nossa alegria estiver conectada com todos os seres, ela será estável.
Sempre há alguém feliz e alegre. A simples percepção disso nos traz uma paz imperturbável. E mais: aumentamos a alegria do outro toda vez que dela gozamos com ele. A lógica é a mesma daquela que atua quando oferecemos um presente e ficamos muito felizes. Se tomamos as alegrias como presentes dos outros para nós, ampliamos as experiências originais que as motivaram. Para nos abraçar, a vitória do outro cresce – e com ela sua alegria.
Quando alguém comemora uma promoção no trabalho, lá estamos nós no mesmo palco. Quando alguém se desespera com uma doença, continuamos no palco. Habilidades e sucessos, erros e fracassos. Nada pertence a ninguém. Somos todos atores vestidos com roupas velhas que estavam amontoadas no porão daquele teatro de escola. Algumas são peças de empregada, outras lembram a moda da elite. Boas ou ruins, elas serão devolvidas, usadas por outros, queimadas eventualmente.
Da academia, de todos os bolsistas e alunos, invejas e ciúmes, incluindo o Richard Gere e a Jennifer Lopez, só a dança sobreviverá, como um convite para que o próximo homem ouse reabrir o salão.
“A mesma impotência que doía, agora como abandono, nos libera do medo do fracasso. Eu era impotente porque orgulhoso: “Se não for para ser perfeito, melhor nem começar”. Ora, toda inveja esconde uma falta de coragem. É mais cômodo desejar do que mudar. Haveria algo mais precioso do que nossos medos?”
Putz, já senti e sinto isso várias vezes! O medo é um mestre e tanto, mas os exercícios que ele exige são ninjas…rs
“Muito mais difícil ficar do lado de quem está comemorando uma vitória do que daquele que precisa da nossa ajuda
A compaixão esconde um excessivo enamoramento de si mesmo, como se só fosse possível confirmar a própria força diante de alguém que está frágil e dependente. A compaixão é parente da inveja.”
Muito bom isso! O limiar é tão tênue, né?
Parabéns pela coragem de deitar sobre a inveja e ainda compratilhar aqui. Adoro esse tipo de postagem.
Manda ver!
bjs
“Como nos manter abertos, felizes e alegres se não temos absolutamente nenhum controle sobre o que nos acontece?
Pois é neste questionamento que Deepak Chopra nos diz que está a magia,o mistério e a aventura da vida.Transformar a incerteza em um ingrediente essencial da própria existência. Então, nada de desespero. Enquanto estivermos humanos nenhum sentimento escapará das nossas experiências diárias. O bom disso tudo é poder desabafar, reconhecer e desafiar nossa capacidade de enfrentamento e dar a cara pra bater…rsrsrsrs.
bjs
Gostei muito do que vc escreveu e vc me mostrou que TENHO que ler Nietzsche, ainda mais vivendo na Alemanha. Olha, sua teoria é a mais pura verdade. É muito mais fácil ter dó de alguém e participar de sua dor do que dividir com ela seus melhores momentos, mesmo sendo incrível isso, pois dividindo coisas positivas ganhamos assim como aquele que ganha. O limite é mesmo a inveja. Um abraco, Sandra
Oi Sandra… To gostando do seu blog… Sim, leia Nietzsche. Eu toda hora falo mas nunca li nada inteiro dele. 😉
Abração!!!
Sincronicidade. Eu lendo esse artigo teu e um amigo me falando coisas totalmente relacionadas no msn.
Obrigada, Gustavo. Deus (ou o universo, ou o nome que quiserem dar) se manifesta a todo tempo, através da gente.
=) Bom finde.
Puxa Gustavo, nunca tinha refletido sobre este parentesco entre inveja e compaixão … que coisa!
Mês passado li uma matéria ótima sobre compaixão na revista Vida Simples e lá têm-se o outro lado da compaixão: para ser compassivo é necessário estar bem estruturado psicologicamente senão pode ocorrer esta distorção que Nietzsche descreveu.
Gostei muito deste seu desnudamento … que coragem! Quem não já sentiu inveja não? Como é difícil assumir para nós mesmos, imagine para uma enorme platéia?! Admirável este post!
E mais que isso uma grande lição … obrigada por compartilhar.
😉
bjs
Olá Gustavo,
freqüentemente experimento uma inveja parecida – mas no meu caso o terreno da inveja é o canto, e não a dança.
O meu exercício tem sido de cada vez mais descobrir a “minha voz” e, nietzscheanamente, amá-la pelo simples fato de ser minha.
Tenho certeza de que você também tem um jeito de dançar que é “só seu” e isso já pode ser suficiente para você extrair prazer da sua dança.
Para além das questões da inveja… por que será que o rapaz não fala direito com você???
Beijos,
Cris.
“No pouco tempo que passo sendo esse outro corpo, me surpreendo com a ausência das coisas que antes eram naturais. Sinto falta de amar, de respirar fundo, de sentir ritmos, cadências, padrões de pulsação que sempre fluíam aqui dentro. Esse corpo não toca bateria! Mesmo sendo o objeto de minha inveja, continuo com a mesma ansiedade, a mesma contração de antes. Então eu passo a desejar meu corpo anterior”
Putz.. isso me tocou profundamente. Já tinha lido estes textos outras vezes. Mas esta frase não tinha me tocado. Ai li, voltei, reli.. meu deus, senti uma fisgada aqui dentro.
O tanto de coisas que eu faço e sinto, que eu sentiria falta se não fizesse.. Eu faço coisas tão incriveis.. que nem dou valor.. que só ter a percepção disso me sinto bem, e o sorriso brota no rosto.
É linda esta descrição sua. Da falta do SEU sentir. Do seu viver. Definitivamente somos únicos e insubstituíveis. Dignos todos, de sermos invejados.
Então, que nos alegremos com esta colcha de retalhos.
Sobre a inveja te digo que a sinto de uma forma diferente. Vejo meu professor de dança de salão dançando e fico pensando no dia que conseguirei pelo menos chegar à metade do que ele dança. O cara é pouco mais velho que eu só, porém tem uns 14 anos que dança, eu quase 3. Sabe passos de dama também. Ao invés de me sentir impotente fico é na cola dele querendo tirar dele tudo aquilo que ele sabe, técnicas de condução e etc. É o tipo da inveja que me motiva a correr atrás e não desistir. Fico olhando os pés dele, os braços quando está dançando com outras pessoas, olho os trejeitos e tento imitá-los. Não sinto raiva dele, pelo contrário sou fã. Eu me sinto capaz de fazer tudo aquilo que me disponho a fazer, claro que algumas coisas terei mais dificuldades que outras, mas tenho a consciência que sou capaz de qualquer coisa que eu queira de fato fazer e de aprender tudo aquilo que eu realmente quiser aprender. é só questão de paciência e tempo.
Sensacional, companheiro.
Hj senti uma p… Inveja. Na verdade descobri esse sentimento. Senti dor, impotencia. Corri para o google – inveja e impotencia. Nunca fiz qq associacao assim. Mas tem. Esta bem q tem sites de psicanalistas e pisicologos q me deram um help para suportar a dor, mas encontrar voce foi mais do que otimo. Parabens pelo texto, seja pela beleza literaria ou pela inteligencia. Amei! Mais do q qq coisa, transparece o sentimento de humanidade.
Vou ficar de olho em voce. Mas prometo, juro mesmo, que nao sera olho-gordo!!
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