O humano como um equilibrista de pratos
Texto antigo publicado no blog Transconhecimento. Tirei de lá e achei melhor compartilhá-lo aqui, já que fala de relacionamentos. Estou aprendendo com o Lama Samten que tudo pode ser visto como relação e que nossa prática deve abranger todas as formas de relacionamento: com os outros, conosco, com o meio ambiente e com a sociedade (que ele chama de “humanidade organizada”). De fato, uma prática espiritual que não altere nossas relações cotidianas seria algo vazio e absolutamente inútil.
Ah, para quem se interessa, o Lama Samten dará uma palestra sobre relacionamentos amorosos essa quinta-feira.
Ao passar pelo ensinamento da Roda da Vida, que divide didaticamente a existência em seis reinos com diferentes atributos, alguns mestres budistas comparam o ser humano a um equilibrista de pratos. O reino humano é o mundo das tarefas, da lista “to do”.
De fato, antigamente a vida era mais simples (ainda que talvez mais difícil), pois possuíamos uma ou duas identidades com as quais interagíamos com outros seres. Era apenas um trabalho e poucos afazeres: um mundo de certa forma bem delimitado, com tarefas e relações interpessoais bem definidas. Havia poucos “pratos”…
Hoje já não há mais sequer algo para se chamar de “mundo”. Simulações, caracóis, experiências de realidade, caleidoscópios vivenciais, percepções difusas, objetos intangíveis, projeções, corredores existenciais… Eis a nova tessitura do real.
Os pratos se multiplicaram, levando-nos a um labirinto de identidades, personagens, relações intersubjetivas, papéis, jogos. Para cada novo domínio, para cada novo âmbito, um novo corpo, uma nova roupa, uma mente diferente, uma fala diferente, um ser adicional. O ser humano é esse espectro flexível, esta capacidade para a plasticidade, que nos permite adentrar cada uma dessas realidades.
No entanto, a mesma potência que faz surgir tal liberdade é, ironicamente, a grande responsável por nosso inferno. É precisamente este vórtice criador que produz os pratos! Quanto maior o número de identidades, maior o número de pratos, maior a nossa prisão. Se esquecemos, por um só instante, de perceber esse processo de criatividade espontânea, a confusão aparece. O que poderia ser uma diversão vira obrigação. O que era ação, atividade, termina reação, passividade.
A liberdade nos mostra sua outra face: servidão, alienação, ignorância, sofrimento, insatisfação. O samsara, o ciclo do “empurra-empurra”, está formado. Esquecidos de nossa plasticidade primordial, surgimos em meio a um monte de pratos e só nos resta girá-los e equilibrá-los.
Nossa energia, do momento em que acordamos ao momento antes de dormir, e também durante todas as nossas perambulações oníricas, é totalmente direcionada para os pratos. Reparem: não para a minha namorada enquanto o ser que ela é, mas para minha namorada enquanto prato; não para os meus amigos, mas para os pratos que o representam!
Imaginamos viver em um mundo com vários seres, ambientes, situações, quando na verdade apenas somos capazes de ver e tocar pratos – nada além disso. O reino humano é um reino de pratos (pelo menos enquanto durar essa nossa prisão de sonho).
Nesse sentido, a meditação – ou qualquer prática contemplativa dentro de uma tradição espiritual autêntica – é o momento no qual paramos de olhar para os pratos. É o único espaço, sempre possível, sempre disponível, no qual não vemos problema se um prato cair. Mais ainda, é o espaço de onde percebemos que nossa relação com o outro nunca esteve ligada ao prato que, em nossa mente, o representava.
Vemos que o namoro se reduziu a preocupações, ocupações e tarefas: “Que presente darei no dia dos namorados?”; “Por que ela não ligou hoje para mim?”; “Tenho de ligar para ela hoje…”. E estes aborrecimentos nunca foram a essência dos relacionamentos. O sofrimento surge sempre de nossa relação com os pratos, nunca com os seres. É extremamente liberador perceber isso.
Em geral, quando conhecemos novas pessoas, elas não nos entregam pratos! Em meu primeiro dia de trabalho, não me lembro de ter saído com um prato… Nos primeiros meses de namoro, eu não carregava pratos… Somos nós que perdemos contato com a presença real, sempre expansiva e insubstancial, dos seres, dos objetos, dos ambientes, das relações. Somos nós que reduzimos tudo a pratos concretos que precisam ser equilibrados.
O segredo de viver está em não nos sentirmos sobrecarregados em equilibrar tantos pratos. Para isso precisamos de relacionamentos saudáveis, equilíbrio entre trabalho e lazer, dentre outras coisas…
[…] Complementando este post recomendo, o belíssimo texto de Gustavo Gitti sobre ”O humano como um equilibrista de pratos”. […]
há um provérbio chinês que diz algo como “se um cão ladra para uma sombra,um milhar a toma como realidade”. viver, sem se estar atento, é isso: um equilibrista d pratos mil.
o pior, a gente sabe, é quando pensamos q estamos começando a abandonar o maniqueísmo de rodar os pratos e, mais tarde, a gente quebra, feio, a cara. no fundo, no fundo, estávamos lá, malabaristas, a girar a túnica inconsútil dos pratos rasos… (o trungpa elabora muito bem essa questão em “cutting thru spiritual materialism”)
eu não tenho resposta pra isso. na esfera do intelectível, posso lançar mão d várias obras, desde o conceitualismo proposto por abelardo, em “dialética”, “confissões”, d sto agostinho, ao “auto-engano” do giannetti, passando pelo conceito de relative and absolute bodhicitta, do budismo. tudo extremamente bem explicado, meticulosamente ajambrado e bem fundamentado. é uma margem q pode nos orientar, mas não é o caminho todo.
pra se juntar as duas margens e a profundidade entre elas, é necessária uma extrema dedicação, até se chegar ao ponto em que tudo ganha roupagem nova, quando a gente troca d armário, d casa, d pele, d retina.
isso pra mim é um mistério, mas já li em algum lugar que o início é assim mesmo: a gente conscientemente se esforça pra navegar nessa trilha: é esforço, é investimento, é semeadura, é erro, é acerto, é tédio, é inspiração, é lágrima e sorriso – enfim é trabalho, labore, até se chegar à atitude não mais pensada, ao insignificantemente natural.
não prestar a atenção às sombras é rodopiar pratos a vida inteira. é ocupar-se se os atuais são de cerâmica, latão, porcelana, barro, metal e por aí vai…
obrigada, Gu: já havia lido esse seu texto mas foi muito bom tocar os olhos nele de novo. :0))))
Myla, no Budismo se diz que para ter a visão antes de tudo é preciso aspirar por ela. Como ela está sempre disponível, é preciso que nos preparemos (aí a meditação, as práticas) e enfim chamemos por ela.
Com a motivação alinhada (foco nos outros), diz-se que a visão correta naturalmente surge e deixa a ação lúcida em meio ao mundo tão natural como escovar os dentes.
Diz-se… Diz-se… 😉
Todas essas teorias, Gustavo, me parecem ótimas, e eu as leio muito tranqüilamente, até com um sutil orgulho – quase que eu não o percebo – de quem lê coisas nobres… mas bastou eu saber que o Lama Samten virá em BH, bastou me imaginar na frente dele, para eu começar a tremer: E agora, estarei nu?! Ou poderei posar para fotos?! É. Tenho conhecido novas palavras e tenho tentado tornar outras mais belas, entretanto… é hora de praticar.
cada vez que leio um texto novo, elejo esse blog como o meu favorito!!!
Já li algumas coisas “psicológicas” que faziam essa relação, mas não usavam “pratos” e sim: o filho-objeto, a esposa-objeto…tudo-objetos que precisamos pra nos completar, sem darmos a real importância ao outro…
é engraçado refletir essas coisas.
realmente libertador.
[…] esforçamos na tarefa sempre frustrada de gerenciar todos os cantos de nosso mundo e acabar como um equilibrista de pratos, nos dedicamos a estabilizar apenas nosso corpo e nossa […]
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Professor de TaKeTiNa
Colunista da revista Vida Simples
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