Amor de conveniência e amor de transformação

por Gustavo Gitti 9 julho 2006 5 comentários

Agora em agosto, Flávio Gikovate dará um curso com o seguinte título: “Egoístas, generosos e justos: o amor nas relações do cotidiano”. A idéia é criticar o que eu chamaria de relação de conveniência, aquela na qual o obstáculo de um se acopla com o obstáculo do outro, o karma de um complementa o karma do outro. Gikovate explora as relações de conveniência utilizando o exemplo do egoísta e do generoso e oferece uma saída no que ele chama de relação entre pessoas justas:

“O justo é essencialmente maduro e bem constituído em sua individualidade. Pode muito bem ficar sozinho. Se optar por um relacionamento amoroso, não agirá nem com a imaturidade e dependência prática do egoísta — que costumava ser chamado de tipo narcisista, o que sempre aumentou a confusão a respeito do uso deste termo — e nem com a condescendência que deriva da dependência emocional do generoso. Não terá medo da fusão romântica porque o individualismo predomina sobre o amor. Acabará por estabelecer um novo tipo de aliança amorosa, mais parecida com a amizade — menos possessiva e nada dominadora — que tenho chamado de +amor, ou seja, mais do que amor. Trata-se da proposição de um novo tipo de romance adaptável aos novos tempos, igualitários.” (Gikovate, 2003)

A relação de conveniência é baseada na mediocridade, no pior de cada ser (quando olhamos para nossas relações, é dolorido perceber como isso é verdade!). Ela não proporciona transformação pois para ser sustentada exige uma espécie de acomodação em nossas fixações neuróticas. Uma pessoa carente, por exemplo, se encanta com aquele que, por medo de ser rejeitado, oferece proteção e segurança de um modo impulsivo e irracional. Elas se apaixonam e se “amam” sem saber por quê.

Não vemos o outro em nenhum momento, pois estamos fascinados pela sensação que ele nos provoca. A prisão narcísica é não amar verdadeiramente o outro, mas o próprio “eu” que ele faz surgir. Contardo Calligaris chama isso de “miséria amorosa ordinária”, na qual “amar significa pedir ao outro o que a gente quer. Ou, pior ainda, pedir-lhe aquela ‘coisa’ de que a gente precisa” (Calligaris, 2005).

Muitas pessoas nunca conheceram uma relação que fugisse a esse padrão. Para elas, a relação de conveniência é tudo o que há, a única possível, onipresente em seus pais, amigos e em todo o ambiente interpessoal ao seu redor. Por isso, é nosso dever dar o exemplo e oferecer ao mundo uma relação de transformação na qual cada um dos parceiros diz: “para te amar eu me transformo, para te amar eu nasço novamente, para te amar eu manifesto o melhor de mim; e ao me transformar eu te amo ainda mais, ao nascer de novo vejo ainda mais sua beleza, ao dar o melhor de mim vejo ainda mais o melhor de você”. Eis o círculo virtuoso do amor, paradoxalmente assim explicado: “eu te amo, e ao te amar acabo te amando ainda mais”.

Enquanto a relação de conveniência já está sempre pronta e estamos sempre preparados para ela, a relação de transformação exige uma construção dedicada, uma forma de treinamento mútuo, de elaboração artística. Não é um caminho fácil mas é o que verdadeiramente desejamos até quando perdemos tempo escolhendo relações tolas que não exigem o melhor de nós. Esse caminho de liberdade e exploração, como bem ensina o poeta Antonio Machado, se faz ao caminhar (“Camiñante, no hay camiño, el camiño se hace al camiñar”). Ainda que o tenhamos construído uma vez com uma parceira, a segunda vez não chega nunca a ser uma repetição, ao contrário do que acontece com relações kármicas.

Prosseguindo com a comparação (pois sempre vemos pelo contraste), percebemos que a relação convencional é uma aproximação simples de mundos: “eu gosto de cinema europeu, você também, eu gosto de música árabe, você também”. Não há real penetração, não há compartilhamento, apenas uma interface cômoda e confortante. Uma outra possibilidade, muito mais deliciosa, é não apenas aproximar os mundos, mas cada um dos parceiros penetrar os mundos do outro e simultaneamente entregar seus mundos para que possam ser invadidos pelo outro. Mais ainda: não apenas abrir-se e penetrar, mas criar novos mundos, dar à luz, engravidar-se do outro e de si mesmo.

Um novo mundo criado a dois é uma das bases de uma relação duradoura e autêntica. O curioso é que, para que isso aconteça, é necessário que cada um dos parceiros se estique, se reconfigure, expanda seu corpo em um novo espaço, enfim… se transforme! Esses novos mundos são espaços nos quais nascemos com novas identidades, são espaços nos quais podemos explorar ainda mais nosso amor, nos permitem ser mais, existir mais, nos conectar de outros modos não só com o outro mas com todo o mundo. Esse é um tipo especial de intimidade a dois que nos deixa íntimos de tudo mais, de todos os seres, de cada cena da vida, de cada olhar e até de nós mesmos.

Será que desejamos manter nossos obstáculos como base de nossos relacionamentos? Queremos amar e ser amados com apenas 20% de nosso ser? Buscamos um parceiro para quê mesmo? Permanecemos com ele por quê mesmo? Quais as bases de nossas relações? Estamos realmente dispostos a abandonar nossas relações de conveniência? Dispostos a nos deixar nascer em frente ao outro e fazê-lo nascer diante de nós, aprendendo lentamente a sonhar juntos?

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Para transformar nossas relações

Há algum tempo parei de escrever no Não2Não1 e comecei a agir de modo mais coletivo, visando transformações mais efetivas e mais a longo prazo. Para aprofundar nosso desenvolvimento em qualquer âmbito da vida (corpo, mente, relacionamentos, trabalho...), abrimos um espaço que oferece artigos de visão, práticas e treinamentos sugeridos, encontros presenciais e um fórum online com conversas diárias. Você está convidado.



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5 comentários »

  • Jamil Habib

    O tema é controverso. Talvez por isso, contagiante. Ha que se esclarecer antes qual o conceito básico ou fundamental do amor neste contexto. Ha o preceito bíblico: “Amaivos uns aos outros …” Me parece claro que não é estabelecido nenhum limite, ou seja, cada um pode amar vários outros. É ai que a coisa pega. Seguramente muitos dirão, sai pra lá meu caro, o amor em questão não tem nada a ver com o preceito bíblico. Então que amor é esse? que elementos caracterizam bem a diferença? Encerro meu comentário reproduzindo um post de meu blog quando do affair Ronaldo x Cicarelli
    Jamil
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    Thursday, May 19, 2005
    O AMOR É INTERESSEIRO?
    Cada vez que a mídia explora o que ocorre de bombástico nas relações afetivas de celebridades como o meteórico romance Ronaldo x Cicarelli, o conceito de amor é questionado. O AMOR É MOVIDO POR INTERESSES? Para facilitar a questão vamos refazer a pergunta: É possível se despertar e desenvolver amor pelo outro sem interesses?Para esquentar a discussão eu me posiciono com um NÃO! Mesmo que estejamos absolutamente seguros de que as razões que nos movem para o amor são de ordem afetiva e não econômicas ou outras, mesmo assim a questão do interesse fica bem caracterizada.Convenhamos, sem interesses não há motivação para conquistar ou desenvolver uma relação de amor. Temos interesse então pelo carinho do outro, pelo afeto, pela atenção dispensada pelo outro, pelo sorriso, pelo olhar, pelo jeitinho, enfim, por uma série de atributos do outro que se caracterizam como elementos de surgimento, caracterização e sustentação do amor. Nessa linha de raciocínio, o amor se acaba ou começa a se acabar quando, aos olhos do outro, tais atributos vão desaparecendo ou desaparecendo o interesse pelos mesmos.O amor então é uma relação de trocas? Eu te amo porque vc tem o que afetivamente necessito. E vc corresponde ao meu amor porque encontra em mim a satisfação da tuas necessidades afetivas. Entendo que, na medida que aceitarmos que o amor é uma relação de trocas afetivas, ou seja, uma relação de mútuos interesses, a relação de amor entre as pessoas poderia ser vivenciada de uma forma menos traumática na maioria dos casos, na medida da aceitação de um, do outro ou de ambos, de que o amor pode acabar quando o nível das trocas não consegue mais sustentá-lo. E ai fica costatado oque o velho poeta falou: “Que o amor seja eterno enquanto dure”
    posted by J.Habib at 6:23 PM | 4 comments

  • DINARA

    Para viver basta nascer. Para conviver é preciso APRENDER amar verdadeiramente. A maioria das pessoas entra em um relacionamento pensando em SER FELIZ, e não em FAZER O OUTRO FELIZ.

  • Jamil Habib

    Espera ai, Dinara. Dessa forma fica meio que um sacerdócio.
    Entrar em um relacionamento somente para fazer o outro feliz???
    A felicidade em um relacionamento não pode ser privilégio só de um mas sim de ambos. Dessa forma cada um procura no outro algo em prol de sua felicidade. Naturalmente é sabido que para que um alcance o que deseja, devera atender o desejo do outro. Trocando em miudos, um tem interesse no que o outro tem a oferecer e vice versa. Quando isso ocorre se estabelece uma harmonia de interesses e dentro da harmonia, o amor. Uai, então o amor é instresseiro. Sim, é legítimo, nào vejo problema nenhum nisso.

  • Lara

    Também acredito que o amor é movido por interesse. Aí abrimos um leque inimaginável de possibilidades: sexo, interesses econômicos, interesse sociais variados.
    E pq não o interesse em DAR amor? É delicioso dar, oferecer amor, carinho, afeto, calor! Quem nunca sentiu falta/vontade de expressar amor assim, simplesmente porque ele nasce dentro de você e precisa ser colocado em expressão, em atividade, às vezes em frenética atividade? rsrs – O amor é verbo…
    Em contrapartida, não conheço ninguém que não queira tbm receber. É aí que nasce o amor das relações afetivas de transformação: você encontra um solo fértil no outro, que por sua vez, vê em você a semente que o seu solo tanto almeja. (ficou piegas? rs) Mas é isso! Amor de conveniência é Relacionamento, substantivo, pronto e acabado. Amor de transformação é Relacionar-se, é verbo, é vivo, é movimento, é evolução. Passar horas, dias e anos da vida num lance que não oferece oportunidade de evolução é, no mínimo, triste.

  • Jamil Habib

    Ta ai um depoimento inteligente.
    Gostei do que comentou Lara. Pena que só vi hoje (17/02/09). De qualquer forma acredito que você ainda retorne para réplica.
    Meu comentário inicial sobre o assunto foi uma abordagem um tanto racional para um tema tão carregado de emoções como é o amor nas relações do cotidiano. Na medida que aceitarmos que uma boa relação de amor subentende uma relação de trocas (interesses), teremos também de aceitar a existência de condicionantes para a continuidade ou perpetuação da relação de amor. Que condicionantes são esses? Basicamente a continuidade dos “valores” de troca. Ou seja, a relação de amor continuará tão forte entre os amantes quanto mais forte a permanência dos elementos de troca. Pesa ai a frequência das ocorrências das trocas como também a qualidade a qualidade das mesmas.Trocando em miudos: Quando uma relação de amor esta a pleno vapor,… curta a vontade, …ame plemamente, …viva toda a gostozura da emoção. Qaundo porém ha sinais de desgastes, pare para analizar sobre os condicionantes que alicerçaram o início da relação. Que valores estão também desgastados? … o quanto cabe a mim sobre a degradação desses valores? …o quanto posso resgatá-los?

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