O paradoxo da liberdade: aceitação ou transformação, desejo ou desapego?

por Gustavo Gitti 9 novembro 2007 6 comentários

Cypher come o bife na MatrixO primeiro comentário do texto “Meu corpo sobre o arrependimento” foi genial:

“Gustavo parabéns por mais um incrível texto e, mais do que isso, um texto que nos faz pensar. Pensando justamente no que escreveu cheguei a um dilema: se temos que aceitar o passado e o presente, além disso, entender nossos erros no passado como parte do que somos, se temos que dizer sim ao nosso corpo e mente e assim ser feliz junto ao momento, qual seria o sentido de sonhar e de buscar realizar esses sonhos quando eles significam, muitas vezes, buscar acertar algo no qual falhamos no passado ou mudar o que somos no presente? Isso significa que para alguem que tenha alcançado esse nível de aceitação não existam sonhos nem desejos, já que essa pessoa diz sim ao que é e não ao que poderia ser?

Abraços, Kodie”

Essa pergunta é tão fundamental e tão recorrente nessas discussões, que resolvi tirá-la do status de comentário e (e)levá-la para post. 😉 Valeu, Kodie!

Quando falamos de amor fati (amor ao destino) ou afirmação da existência, estamos falando de liberdade, da ação lúcida e desimpedida no mundo. Essa pergunta às vezes surge assim: “Um ser iluminado ainda tem desejos ou sonhos?”. Ou ainda: “Qual a graça da vida sem apegos ou longe de nossas fixações tão queridas?”. Lembram da cena do bife em Matrix?

Aceitação ou transformação?

Depois de muita meditação contra a parede, talvez surja um insight: “Eu vejo a perfeição de todas as coisas e poderia morrer nesse momento”. Do êxtase, logo se segue outra idéia: “Assim que eu levantar, qual o sentido de continuar vivendo?”. Ele pode tomar outras formas também: “Vamos todos morrer em breve e, ainda que consigamos prolongar a vida, o Sol vai explodir com tudo anyway. Para que me preocupar em fazer algo?”. Chegar, de corpo inteiro, a esse dilema é sinal de muita lucidez!

“Isso significa que para alguem que tenha alcançado esse nível de aceitação não existam sonhos nem desejos, já que essa pessoa diz SIM ao que é e diz NÃO ao que poderia ser?”

O equívoco está em negrito. Pode parecer estranho, mas só podemos aceitar uma coisa quando vemos que ela podia (e pode) ser qualquer coisa. De infinitas possibilidades, surgiu um momento. Sua perfeição está em sua singularidade. Uma coisa é bela precisamente porque, dentre todas as outras, ela é isso que aparece a nós. Sua namorada poderia ter sido outra, mas é essa. Você poderia ter nascido em Londres no ano de 1320, mas nasceu em São Paulo, 1982. Você poderia ter feito música, se não tivesse se apaixonado pela filosofia. Há um deslumbramento todo especial na pergunta koan: “Por que eu sou eu e não outro?”. Ou, na versão de Pascal:

“Quando eu considero a curta duração de minha vida, engolida na eternidade anterior e posterior, o pequeno espaço que ocupo, e mesmo o que eu posso enxergar tragado na infinita imensidão do espaço no qual eu sou ignorante e que me ignora, fico horrorizado, atônito por estar aqui mais do que lá; por que agora ao invés de depois?”

Meu corpo olha para as possibilidades passadas e aceita tudo em meio a tanta beleza. Tudo poderia ter sido diferente, mas não foi! Quando, por outro lado, meus olhos se projetam adiante e se direcionam às possibilidades futuras, brota energia de transformação, sonhos, what ifs positivos. Há vida depois do estado de não-busca livre de motivações autocentradas de sucesso pessoal? Claro! As pessoas mais empreendedoras e ativas que conheço (com mil projetos e sonhos) são grandes mestres de meditação.

Sentamos e aceitamos. Assim que levantamos, porém, já queremos transformar. Amor que só aceita é manco. Amor só de transformação é cego. Enquanto a posição de aceitação revela a beleza, a segunda posição corporal ilumina pontos de transformação. Uma contempla e acolhe, a outra espreita e age.

Experimente. Escolha um amigo que está mal e projete-o na tela da retina. Percorra seu passado sob a condução de uma simples postura compassiva: “Ele fez o que pode”. A aceitação dissolve culpados e encontra redenção para qualquer erro, por mais sólido que pareça ser. Logo em seguida, trace possíveis futuros. A atitude agora é de amor: “Ele pode sempre fazer mais”. Lembre-se dos momentos em que ele manifestou grandes qualidades e aplique-as agora para descobrir saídas ao sofrimento que o afeta.

Depois desse treinamento do olhar, encontre-se com ele e veja a diferença na relação. Eis um método bastante eficaz de trazer benefício ao outro. Em vez de aprisioná-lo com sua presença, lembre-se que ele não é os condicionamentos que apresenta (prática de compaixão) e faça com que seus olhos foquem o ser livre nele. Enxergando a liberdade sempre presente no outro, nosso trabalho é reconhecer as qualidades positivas e agir para que elas floresçam (prática de amor).

Na liberdade, aceitação e transformação são inseparáveis. Os taoístas tem um nome para essa ação que transcende imobilidade e movimento: wu wei (não-ação). Os budistas falam de compaixão absoluta e relativa: se a vida é onírica, trabalhamos não apenas para melhorar o sonho de todos (compaixão relativa), mas também para ajudá-los a despertar (compaixão absoluta). Vemos a perfeição até na pior das guerras e, a um só tempo, reconhecemos o horror e agimos para seu fim. O Neo é um bom exemplo: ainda que tudo seja Matrix, é seu dever entrar lá dentro.

Desapego ou desejo?

Voltemos à meditação. Para radicalizar o exemplo, vamos projetar um ser delicioso do sexo oposto na parede (funciona também com sorvete de chocolate para mim). Aquilo nos chama, brotam impulsos, salivamos um pouco, nossa mente se excita. A impossibilidade do movimento só faz aumentar as fantasias. A parede agora passa um filme pornô.

Se a liberdade estivesse na imobilidade, a disciplina repressiva escaparia de culpa e frustração. Se a saída fosse o movimento, não teríamos sofrido tanto nas diversas vezes que nos jogamos e, ao fim, batemos pra valer em uma parede fria e dura. O controle vira apatia. O desejo logo se transforma em dor. Tudo com uma boa dose de arrependimento…

É possível mergulharmos em tudo sem perder a liberdade? Existe um caminho do meio entre o distanciamento frio e o mergulho cego? Alguns dizem que o extremo da energia masculina é uma desidentificação que impede o contato vivo com o mundo (eu já vivi isso). E que o desequilíbrio da energia feminina leva a um envolvimento tão colado aos fenômenos que impede qualquer autonomia. No primeiro caso, nossa prisão vem pelo fechamento. No segundo, pela excessiva exposição. Nenhum dos dois extremos oferece liberdade…

Esse é um bom momento para sustentar essas perguntas e expandir nossa indagação pelo caminho além dos extremos. Levá-la até o fim, carregá-la conosco em cada momento. Mais do que responder precipitadamente, nosso desafio é viver com a liberdade mínima que já temos e fazer de cada momento uma pergunta pela liberdade ampliada do próximo. Já temos tudo: apatia, dor, arrependimento, desejo, ansiedade, tesão… misturados com traços de sabedoria, lucidez e abertura. Basta começar onde já estamos.

E vocês? O que fazem para treinar esse tipo de liberdade? Que práticas, métodos e atitudes funcionam para vocês? Quais problemas enfrentam atualmente e quais insights já surgiram pelo caminho?

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Para transformar nossas relações

Há algum tempo parei de escrever no Não2Não1 e comecei a agir de modo mais coletivo, visando transformações mais efetivas e mais a longo prazo. Para aprofundar nosso desenvolvimento em qualquer âmbito da vida (corpo, mente, relacionamentos, trabalho...), abrimos um espaço que oferece artigos de visão, práticas e treinamentos sugeridos, encontros presenciais e um fórum online com conversas diárias. Você está convidado.



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6 comentários »

  • myla

    “qto mais adequadamente eu puder interpretar a minha profundidade, tão mais transparente a vida vai se tornar p mim. mais claramente eu poderei enxergá-la e entendê-la. menos ela irá me confundir, menos ela irá fazer-me ficar perplexo. menos ela vai ficar na sua forma compacta.” – a consciência sem fronteiras, ken wilber.

    qualquer um q já tenha se sentado, em silêncio, coluna ereta, atenção na respiração, já se deparou com um sexto sentido. e não me refiro à intuição, premonição, terceiro olho, nada disso.

    nosso sexto sentido é o observador q observa. sou eu, atenta, observando a mim mesma teclando esse comment, fora quaisquer outros pensamentos q tenha durante essa ação. é o que observa a tudo isso.

    na meditação, damos toda atenção a esse observador: não abandonamos nossos pensamentos, nós os encontramos com compreensão e então, eles nos abandonam. e isso, claro, dá uma puta liberdade.

    e aí a gente entende que “a única ameaça à minha segurança em ser reside em mim mesmo: na falta d fé na vida e em minhas forças produtivas; nas tendências regressivas; na indolência íntima e na disposição a q outros dominem a minha vida”. ter ou ser, erich fromm.

    super parabéns pelo nossa via!!! cê vai brilhar lá também, Gu! :0)))

  • Kodie

    Muito bom o post Gustavo, me fez ver de forma diferente o post anterior “Meu corpo sobre o arrependimento”. Não sei se consegui, ainda, entender exatamente o sentido da união desses dois posts. Após refletir cheguei a seguinte conclusão: aceitar o que é, aceitar a singularidade de tudo como sua perfeição(o que somente pode ser alcançado enxergando se as infinitas possibilidades) é parte do caminho para a liberdade. A outra parte é sentir a energia de transformação e entender que liberdade é, na verdade, não mudar o imperfeito, mas ser capaz de mudar aquilo que já é perfeito. O problema é como chegar nesse ponto.

    Eu, creio que ainda por ser muito jovem, não consigo, por mais que o sonho ou desejo seja de alguma forma coletivo, buscar algo que não esteja centrado no sucesso pessoal. Acordo todos os dias e somente dou valor aos minutos que vivo quando eles foram empregados para melhorar a minha pessoa de alguma forma, seja uma habilidade qualquer ou minha própria mente.

    Disto tudo que disse anteriormente só consigo enxergar uma estrada para a iluminação: primeiro alcançar sucesso pessoal extraordinário, depois aprender a ser livre e dessa forma conseguir viver em paz, já entendo que quando se busca algo deve-se buscar algo que não esteja centrado no sucesso pessoal, mas sim no sucesso do mundo, já que sendo parte, somos o todo.

    Desculpe pelo comentário excessivamente longo, procurei resumir ao máximo o turbilhão que lavava minha mente. Aproveitando esse comentário gostaria de lhe fazer um pedido Gustavo: que escreva, se possível, um post mais amplo e mais detalhado sobre o meditação(li o que escreveu e que foi publicado na papo de homem mais ainda tenho muitas dúvidas sobre meditação e creio que ainda não entendi o que é, na verdade, meditar) e um outro sobre Budismo, sobre o que ele é examente(procurei no seu outro blog, o “Transconhecimento”, mas não achei nenhum post denso sobre essa fomra de se pensar).

    Abraços, Kodie

  • Gustavo Gitti

    Oi Kodie,

    Sucesso pessoal é uma ilusão, cara. Não tem ninguém que conseguiu se manter no topo, acredite. Sempre brota uma ansiedade, medo de perder a posição, medo de perder a felicidade, o outro, a grana, a fama, o poder.

    Fazer parte de um sonho coletivo é bem melhor. Uma vez escrevi:

    “nossas histórias não fazem sentido nelas mesmas e, principalmente, que nossas habilidades e identidades são inúteis dentro de nossa própria história! Nossos sonhos individuais são estéreis e fadados à decadência. Nossas histórias e nossas habilidades são parte de um sonho coletivo; temos apenas de trazê-lo à tona, encarnar o mito.”

    http://transconhecimento.blogspot.com/2006/09/lady-in-water-magia-do-sonho-coletivo.html

    Sobre essa estrada que você propõs, ela não existe. Se depender de seu sucesso pessoal, você está perdido! Comece a estrada ao contrário e no meio dela você chegará ao fim. Comece pelos outros.

    Valeu pelos dois pedidos. Meditação e Budismo. Anotado! Mas não espere por mim: aproveite esse impulso de saber mais e procure um grupo para praticar. Envie um email para mim em PVT dizendo sua cidade que eu listo alguns para você.

    Abração!

  • Natália

    Acho que como mulher, quando vejo que estou perdendo às “estribeiras” e viajando em meus proprios impulsos procuro fazer coisas que não favorecem isso.

    Algum trabalho que exija concentração, transpiração.

    rtabalhos braçais, como uma faxina pesada, carregar algo pesado, resolver um problema matemático estas coisas.

    Quando foco no mecânico, no lógico, consigo conter estes impulsos malucos que tentam me descontrolar. Rs

    Quase sempre dá certo. (Até hoje não matei ninguém)

  • Deyvid

    Comecei acompanhar o PDH faz pouco tempo, desde já os textos que mais gostei eram os seus, o que me trouxe a esse blog. Nesse tempo eu nutri pensamentos e “ideologias” idênticas ao Kodie, quando li o comentário pareceu até que fosse eu que tivesse escrito.

    Com o tempo somado as coisas que leio, algumas dúvidas vão ficando mais claras, mas tem uma frase na tua resposta que fica girando na minha cabeça sem solução:
    “Comece a estrada ao contrário e no meio dela você chegará ao fim. Comece pelos outros.”

    Se puder ser um pouco mais claro, ficarei muito grato!
    Abraço.

  • Leandro

    Olá Gustavo, o texto é incrível. Já li muitos dos teus textos e eles me fizeram muito bem. Como estou iniciando a prática de meditação com professor peço que você recoloque o link onde diz “Basta começar onde já estamos.” Abraços.

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