Ó do Borogodó

por Gustavo Gitti 2 maio 2008 21 comentários

Samba da Gafieira

Ele queria dançar samba de gafieira. Observou a garota que sabia os passos, esperou o outro cavalheiro se retirar e a convidou. Dançaram bonito, pisaram certo, fizeram os passos básicos, outros mais avançados. Peão, facão, gancho, puladinho, pernada, trança, chicote… Outras músicas, outros passos. Era isso: uma dança de passos.

E então ela. Ela. Não sabia dançar e, não se sabe por que, sempre havia rejeitado convites. Desceu das sandálias altas e ficou descalça. Ele tirou os sapatos para não machucá-la. Decidiu não ensinar passo algum, ao contrário do que costumava fazer com damas que nunca tinham dançado. Abraçou-a forte: “Vem cá e se mova comigo”. Corpo de um lado para outro, sem tirar os pés do chão. Só movimento, nenhum passo.

“O que eu faço?”, ela parou algumas vezes para perguntar. “Nada, apenas relaxe”. Ela insistiu: “Mas o que eu faço para relaxar?”. Ele riu: “Ouça a música. Nós não vamos fazer nada que já não esteja no som, não vamos adicionar nada que já não esteja presente”.

Os pés começaram a andar seguindo o movimento do corpo. Antes eram os passos que moviam o corpo. Agora era o corpo que guiava os passos. Com mulheres que estavam começando, antes ele dançava distante, priorizando o espaço para ela se adaptar aos passos. Agora não tinha espaço algum entre eles. Eles se pressionavam inteiros, não havia como ela sair do ritmo dele. Se a condução costumava vir de braços e mãos, agora ela ocorria pelo acoplamento dos corpos, pela respiração, pelo peito, pela barriga, pelo deslizar de pernas. Era uma dança de corpos.

Ele não conhecia as músicas. Melhor assim: sem saber, parava quando o silêncio vinha e deixava o pandeiro conduzir sua própria condução. Ora a voz o guiava, ora o surdo. Nada era calculado. Ela começou a sentir a liberdade de se mover além do controle, além de qualquer pensamento premeditado, dela ou de seu parceiro. Ela se entregava a ele porque ele já estava entregue à música. Não seria correto dizer que ele a conduzia ou que ela era conduzida por ele. Ele apenas se movia e ela queria ficar o mais perto possível a cada microsegundo. Ou era o contrário…

Os passos lentamente ganhavam vida. Com seu pé, ele empurrava e puxava o pé dela, como no tango. Mas aquilo não era tango. Como no samba, eles balançavam, mas aquilo não era gafieira. Os pés às vezes entravam na levada do forró, mas não havia forró algum ali. Surgiram movimentos de tronco e pescoço típicos do zouk, só que aquilo não era zouk.

Depois de uma música rápida, voltaram para a mesa de mãos dadas, em silêncio, com o coração acelerado. “Talvez eu possa fazer isso com a vida também”, ele ouviu de si mesmo.

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Para transformar nossas relações

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21 comentários »

  • Thiago

    ‘Deixa a vida me levar, vida leva eu…’

    Muito bom! 🙂

  • Nati

    “Ela começou a sentir a liberdade de se mover além do controle, além de qualquer pensamento premeditado, dela ou de seu parceiro.”

    Isso ainda pra mim é muito díficil.

    E o pior, ainda me cobro e me sinto mal quando não consigo me entregar, esquecer problemas e etc.. E isso é também não se entregar à vida.
    Enfim é uma bola de neve. Estou rodando com ela.
    =/

  • Talita

    Que delícia…

    De coração acelerado fiquei eu, ao ler e imaginar a cena!

    Adoro dançar!

    Não conheço passos, mas sigo a frase que diz:

    Dance like no one’s watching
    “Dance como se ninguém estivesse vendo”.

    E é sempre divino!

    E também se aplica a vida… É isso aí… quando a gente consegue perceber o ritmo e se entregar a ela, tudo se encaixa…

    Um grande beijo!

  • Juliana

    Oi Gustavo, fiz uma vez uma oficina de polirritmia contigo no CEBBCM. Procurei saber mais e encontrei teu site…sempre leio com delícia, mas este post tá encaixando com o que tenho visto e falado ultimamente…esta semana surgiu um exemplo do darma: viver sem esforço é como dançar junto, se pensarmos no próximo passo, pisamos no pé do parceiro, se nos deixarmos levar pela música e pelo movimento do outro, dançamos gostoso! Assim é a vida, e você parece que captou isso do lado de lá! Beijos, Juliana.

  • Gustavo Gitti

    Juliana, que felicidade saber que você participou do workshop!!! To lendo seu blog.

    Pena que eu, relapso, não lembro de você! 😉 Me dá mais referências ou uma foto please?

  • Renata

    Eu me identifiquei muito com esse post, pois sou uma não-dançarina. Não sei dançar e qdo invento de tentar, quase sempre pego alguém que começa a tentar me ensinar. Acho simplesmente impossível prestar atenção na música, no rapaz, no movimento do corpo, dos pés… Em compensação tenho um amigo querido, com quem adoro dançar. Ele diz que não sabe dançar tbm, mas me segura bem apertado e vai me levando. É ótimo, não sinto que tenho que prestar atenção em nada, só aproveito o momento.

  • Cris

    Lindo!

    Eu não gosto muito de fazer auto-propaganda, mas tenho que dizer que este seu me lembrou este meu: http://mulher-solteira.blogspot.com/2007/11/descartes.html

    Um beijo.

  • Gustavo Gitti

    Cris, muito bom seu post. Tomara que também tenha acontecido de verdade. A melhor ficção é aquela que não precisa ser imaginada.

  • Patricia

    Dançar é muito bom!
    E só é melhor quando o homem tem o dom na hora conduzir.

    Saudade, preciso dançar!

  • Ana

    Nooooooossa, que de-lí-cia!!!!! Dá vontade de dançar!!!

  • Cris

    Gustavo,
    não tenha dúvida…
    Eu não fui abençoada com o talento da ficção. Só sei escrever sobre o que eu vivo ou aquilo que me toca profundamente…

  • Autor

    Definitivamente, eu viajei na descrição, no conto, no contexto e na dança.
    Me senti num salão observando os dois dançando.
    Parabéns.
    Inveja branca da sua habilidade.

  • cy

    Este é para você. Eles estarão aqui na proxima semana.

    http://www.youtube.com/watch?v=V_xKYAYLjFs&feature=related

  • iara

    tb não sei dançar assim…me levo muito bem sozinha, pelas mãos de alguém, juntos, queria muito!
    mas ainda não encontrei quem saiba me levar…
    deve esytar solto por aí….
    lindo texto.

  • caio

    Muito bom o texto Gitti.

    Bem escrito, deu vontade de sair dançando, pegar a primeira mulher que eu encontrar na rua e sair dançando o bolero de são paulo de suas confusões e acertos

    Parabéns continue escrevendo assim.

  • Bruno

    Gustavo ta demorando pra atualiza o site ! =/

  • Lyn Monroe

    Adorei esse post!
    Talvez a gente DEVESSE fazer isso na vida tbem.
    talvez tudo desse mais certo.
    beijo gde.

  • Natalia

    Amei esse post, amo dança, estou encantada com o blog e com os posts, uma amiga me passou o link porque sabia que eu ia gostar , e estou adorando…Faço dança de salão há 1 ano e alguns meses, e li os passos que você mencionou no primeiro parágrafo e sei fazer a maioria ( tento fazer, depois de ser conduzida, claro). Me senti muito bem em ler seus textos, como me sinto ao dançar.

    Parabéns!!!

  • Livia

    aiai, entrei neste post …

    ainda bem que amanhã é dia de dançar =)

  • Babi

    Belo post!!!

    Me lembra minha última paixão: um forró dançado de corpo colado com o maior prazer que já tive na vida, o salão parecia enorme, nuvens e o trio virgulino parecia tocar (só pra gnt) e nem eles estavam lá e nem forró tocava. Mas Rodrigo me tocava e com maestria!

    Abraços de uma leitora fiel, Gitti!

    😉

  • EVANDRO PAZ

    Cara, parabens viu?? Poucas vezes li um texto que expressasse tão bem essas coisas que sentimos enquanto dançamos nosso querido forró pe de serra, esse dança entregue ao par, e a música, tal qual o texto descreve.

    abçs PROF. EVANDRO PAZ

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