LOST: fim da 4a. temporada (ou como acabar com qualquer briga de casal)

por Gustavo Gitti 30 maio 2008 17 comentários

LOST - Kate na quarta temporada da série - Season 4 FourthAviso: este post NÃO contém spoilers e faz sentido mesmo se você não assistiu a nenhum episódio da 4a. temporada da série. Leia tranquilo.

O fim da quarta de temporada de Lost só perde para o fim da terceira. É impossível prever a cena final – e ainda que se adivinhe não há como explicar o acerto. Os problemas só se multiplicam já que a resolução de um dispara uma miríade de complicações. Como já disse antes, no fim da segunda temporada (“Sobre chão e nuvens”), a história de Lost é uma das melhores metáforas para vida. Ou melhor, nossa vida é uma metáfora para a história de Lost.

Cada personagem na ilha carrega um passado (que dá coerência a suas ações), patina no presente e anseia por um certo futuro, enquanto evita possíveis outros. Essa é a estrutura simples e previsível de nossas vidas. Podemos nos achar originais, ter orgulho de nossos insights e evoluções, contar com gosto nossas histórias inéditas. Podemos batalhar por algo, chorar perdas, sorrir, pular com acertos. Nossos fracassos e sucessos, porém, são essencialmente patéticos. Ridículos.

Dificilmente saimos dessa estrutura. Se estamos alegres ou miseráveis, deprimidos ou extasiados, não fugimos à grande regra. Em ambos os extremos que nossos poros podem suportar, insistimos em dar solidez a tudo o que nos acontece. Ainda que falemos “Não me levo a sério” ou aconselhemos “Não leve sua vida a sério”, algo em nós acredita na concretude e realidade dos fatos. Isso pode ser evidenciado pela seguinte questão: “O que você acha mais real: uma ilha com poderes mágicos, monstros de fumaça, escotilhas e experimentos misteriosos, ou um planeta azul que tem terroristas, psicanalistas e bombeiros? Explosão magnética ou World Trade Center? John Locke ou Platão? Jack ou Patch Adams?”.

Ver mais realidade em nossa vida do que em Lost, eis o que nos faz sofrer. O dilema é que é exatamente isso que nos faz felizes também. No meio de uma grande paixão, perguntamos ao outro: “É tudo real, né? Quero muito que seja tudo real, pois aí essa felicidade aqui não vai caber em mim”. A mesma resposta positiva que nos conforta logo em seguida vai nos dilacerar. Não sabemos como nos livrar da dor sem arremessar junto o prazer. Quer um bom resumo para nossos percursos? “Papai, me conta um pouco sobre seu passado?”; “Filho, eu passei a vida tentando conseguir um tipo de prazer que não viesse acompanhado de dor”.

Esforçamo-nos para configurar cada situação de modo que não haja problemas. Ora, o que queremos é tão simples! Sair da ilha, jantar com o filho, reencontrar a grande paixão, andar com pés e pernas, ter um filho, se livrar dos processos criminais, se curar do câncer ou escapar da maldição que veio com os milhões de dólares da loteria. Para isso, traçamos uma linha causal e seguimos, ponto a ponto, construindo uma situação ideal. “Para sair da ilha, eu preciso antes ir até a escotilha que fica a leste do abrigo, lutar contra alguns, matar outros, fazer uma cirurgia, torturar o líder inimigo… Aí sim terei paz, harmonia, descanso”.

Sempre que resolvemos algo, em vez de nos aproximarmos da felicidade, apenas criamos outro nó a ser resolvido. O processo é infinito. Sem perceber, vamos passar a vida toda andando em círculos. Você está em qual temporada? Décima quinta, vigésima segunda? Aqui o arquivo é Gustavo_Gitti_s25e98_uncut.avi.

Quando vemos nossa vida em uma tela, com outras faces e histórias, fica mais fácil perceber que aquilo é só um sonho. Mais ainda, podemos conceber um universo (tão real quanto o nosso) no qual há outras configurações, como Dharma Initiative e escotilhas, outras linguagens, eventos, seres. Imaginamos um ser nascendo ali, vendo tudo como natural e real, assim como nascemos no Planeta Terra e não nos assombramos quando vamos apertar teclas em uma máquina para escolher o líder de nosso grande grupo ou não pulamos de susto quando nasce um outro ser dentro da nossa barriga 9 meses depois daquela noite em que nosso parceiro colocou uma extensão de seu corpo em de nós.

Se conseguimos nos divertir com os personagens de Lost, com o quanto cada um ali leva seus dramas a sério e batalha por um tipo de futuro, já estamos prontos para olhar nossos problemas com um sorriso malicioso. Entretanto, ver nossa vida como um sonho não significa tirar sua realidade, mas vivenciar uma possibilidade sem perder o reconhecimento das outras – ou seja, sem perder a liberdade.

Há uma diferença entre os conceitos de ilusão e delusão: enquanto o primeiro invalida a experiência, o segundo (muito mais sofisticado) apenas a relativiza. No cinema, mergulhamos no filme, seguimos o protagonista com nossos olhos e pulmões. Ele morre, nós choramos. Enquanto estamos movidos pela história, nos esquecemos de que aquilo é uma projeção dentro de um cinema dentro de um shopping dentro de uma cidade. Tudo feito por atores, diretores, roteiristas. Esquecemos que estamos sentados em uma cadeira, que antes estávamos rindo comendo pipoca ou que aquele ator já fez um personagem completamente diferente. Porque ignoramos as realidades fora do universo do filme, somos fisgados.

Um filme não provoca ilusão, mas delusão: enquanto focamos o filme, esquecemos que há o cinema. Em nossa vida, ocorre o mesmo. Mergulhamos em uma história, incorporamos um personagem, seguimos com pulmão e coração até o fim do drama, que parece o fim do mundo, de fato. A delusão do filme dura 2 horas; a da vida, 2 anos ou décadas. Esquecemos que antes sequer conhecíamos a pessoa pela qual hoje sofremos. E vivíamos bem, sem problemas, não é mesmo? Lembrar disso é sustentar nossa liberdade, escapar da delusão.

Sempre que sofremos, achamos que fizemos algo de errado. E quando nos alegramos, sentimos que acertamos. Esse é um grande equívoco. Pois para a dor surgir não fizemos nada de errado! E a alegria não veio de acerto algum! Eis nossa condição: estamos dentro de um filme que nos apresenta um dilema impossível de ser resolvido. Os conflitos continuarão a aparecer e, para complicar a situação ainda mais, a morte virá com tudo. Não temos chance alguma.

Filme sem saída, história após história, ausência de resolução final. Sua amiga vem chorando e fica algumas horas explicando por que acabou com o namoro de 7 anos. Ela não aguenta mais sentir o peito doendo: “O que eu faço, me diz?”. Você tem duas opções. Na primeira, conversa, analisa argumento a argumento, abraça, chora junto, ri, sai para dançar… Isso se chama terapia (cognitiva ou emocional). Na segunda, você olha bem no fundo dos olhos dela e sussurra: “Acorda!”.

O melhor dos conselhos não foca o conteúdo, mas a estrutura do problema. A causa da briga pode ser raiva, ciúmes, inveja; pode ser a última noite, um fato longe no passado, uma TPM repentina. Para cada causa relativa, podemos traçar a origem, passar por anos de terapia, tomar remédio, compreender, refletir, reprogramar. No entanto, depois de 578 causas resolvidas, sempre aparecerá mais uma, e outra, e outra… A saída não-causal vem na forma de um pulo para além de nossa coerência, uma quebra dentro de nossas tentativas de construir uma configuração ideal.

Nossos mais complicados problemas têm a densidade da nuvem que acabou de cruzar o céu, a seriedade de um palhaço bêbado, a solidez de um holograma. Como em um filme, sua qualidade de vividez e brilho ofusca nossos olhos e os deixam girando como no estágio REM (rapid eye movement) do sono. Enquanto nossos olhos se perdem, nos debatemos, reagimos, procuramos soluções. Não sabemos que basta encará-la, com olhos de sorriso, para que a complicação se mostre onírica.

Os personagens de Lost seriam liberados instantaneamente se algum deles encontrasse DVDs com o Making Of das primeiras temporadas, se alguém ali soubesse que há um mundo de gente acompanhando suas histórias. Mas liberados de quê? Da ilha, dos problemas, dos outros? Não. Da contração que agora os aflige, da cegueira, do esquecimento. Não da vida, que se tornaria ainda mais intensa; ou da ilha, que seria enfim aproveitada. Em vez de seguir o conteúdo de seus problemas, eles enfim parariam e descansariam um pouco para, quem sabe, planejar uma festa ao fim do dia. No mesmo sentido, podemos nos liberar a qualquer momento, sem preparação terapêutica, sem reconfiguração alguma, qualquer que seja nossa condição, se soubermos que nós somos tão reais (ou tão ficcionais) quanto os personagens da série.

P.S.: Pacificar as relações não significa diminuir a temperatura ou parar de brigar. A energia que hoje usamos sem controle para transar e depois discutir, que nos acaricia e depois arranha até sangrar, essa mesma energia pode ser muito mais potencializada em brigas furiosas dentro de relações lúcidas, quando ambos sabem que estão sonhando juntos. Com amor e liberdade, dá até para brigar muito mais.

P.S. 2: Durante uma aflição, perceba seus olhos em estado REM (não é por acaso que é este o estágio do sono no qual surgem os sonhos mais nítidos e a atividade cerebral é praticamente idêntica à da vigília). Olhe o absurdo da situação. O sofrimento cessa quando vemos que estamos sonhando. Sem delusão, o sonho continua tão real quanto antes (ou mais até), com a diferença de que agora ele é vivido como tal.

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17 comentários »

  • Nati

    Dificil capturar todas nossas fugas, nossas prisões dentro de nosso próprio mundo.
    Algumas coisas que já percebo e consigo liberar e rir, não chegam perto das tantas outras que eu ainda levo á sério.

    Nem que seja a idéia de que não levo nada a sério.

    Esta idéia é bem séria dentro de mim. Mas eu, claro, me contradigo sem ver, sem esperar. Mas posso reconhecer, que mesmo querendo, ainda não consigo, desaprender, tudo que minha mente prendeu um dia!

    Ótimo texto Gu.

  • Dani Garcia

    Pra mim a grande ilusão é achar que podemos viver sem ela!

    bjs

    Dani

  • Daniel

    Cara,

    Fui cochilar ontem enquanto baixava o season finale e só acordei hoje.
    Acordei e não tinha visto o episódio. tsk tsk tsk

    Posso te dizer, viu?! Foi bom dormir.

    Quando tenho um sonho maravilhoso com um tesão daqueles, acabo acordando com esse tesão. Quando sonho algo bem angustiante (geralmente em relação com algo do dia-a-dia – ok, o tesão também…), acordo com a mesma angústia.

    E não é que quem sai da ilha de Lost continua com os mesmos problemas e aflições de quando estão na ilha?! Como você acabou dizendo nos PSs do post, não deu pra acabar com qualquer briga de casal!

    Passado, presente e futuro estão absurdamente ligados porque estão na mesma narrativa. Acordo dos sonhos sentindo a mesma coisa por um bom tempo pois também conto uma história com esses elementos fantásticos.

    Já elementos como um Encontro Marcante, daqueles que brilham os olhos e batem juntos os corações, ou um Momento Sagrado, quando o ‘quando’ e ‘onde’ parecem não mais fazer sentido, só me apontam o quanto as histórias contadas podem ser absurdamente belas e gostosas!

    Sobre o absurdo, post de amigo alguns dias atrás:
    http://ticiano.wordpress.com/2008/05/28/sisifo-feliz/

    (pequeno *spoiler* pra quem não viu a 4ª temporada de Lost)

    ‘Let’s move the island’ de como vemos o que acontece e de como contamos histórias!

    Como fazemos pra mover uma ilha? Algo em nossa vida que vemos como se estivésse ligado às profundezas do Planeta, imóvel, imutável… É tão simples mesmo? Tem preço a pagar? Nunca vamos poder voltar?
    Sinceramente, todas as vezes que consegui mover uma ilha não foi tão simples quanto abrir os olhos e acordar. Aliás, nem isso é tão simples! 🙂

    Mas, concordo: é ótimo quando a história dá uma reviravolta e mudamos a perspectiva de como vemos algo. E é lindo como não temos controle que algumas vezes gostaríamos de ter sobre isso. Muitas vezes, acabamos no meio de um deserto africano, noutra vez encontramos nossa constante com quem estivemos ligados mesmo à distância nos últimos anos.

  • Jazz

    Blog de conteúdo. PERFEITO. Já linkei para passar aqui mais vezes (isto não é um dica para linkares de volta, é só um elogio.).

  • Rafael Galvão

    genial,parabens pelo texto…a comparaçao da série com a vida real foi bastante inteligente!

  • Mulher Solteira

    Nossa!

    Eu espero que um amigo nunca me diga “acorde!” se eu precisar de algum consolo para elaborar o fim de um namoro de sete anos…

    Eu já disse uma vez e uma amiga morreu de rir: “lucidez tem limite!”. Tem horas que o que a gente precisa é isso mesmo: falar, falar, chorar, rir, rever, sair pra dançar, dormir, segurar a mão… E deixar o tempo agir com o seu infalível efeito curativo.

    (Mesmo assim, adorei o post).

    Beijos…

  • Alê

    Me ocorreu uma coisa apenas diante de muitas boas idéias desse seu texto. As vezes, o melhor talvez seja ser um bobo, simplesmente. Permitir-se ser um bobo (no sentido mais bonito da palavra, como The fool on the hill, dos Beatles).
    Isso simplifica muitas coisas na vida, mas não é nehuma solução.

    beijos

    P.S: Seus dois últimos textos estão mais maduros, mais curtidos como um bom vinho no barril. E isso não tira mérito nenhum dos anteriores.

  • Fazendo Terapia

    Eu não assisto Lost 🙁

    mas achei o conteúdo do seu site bem interessante. Legal.

  • Marcela

    O post do Daniel foi melhor em tudo do que o próprio texto do Gustavo.

  • Bruno

    Um contentamento descontente!
    Dessa vez ficou muito mais fácil a compreensão (pra mim) do texto Gustavo. Abraço.

  • Sarah K

    oi Gustavo!

    este post me fez pensar na filosofia espirita, na vida como um grande aprendizado, que realmente viemos e voltaremos aqui diversas vezes para a cada vez estarmos mais preparados.

    Uma das cenas que mais gostei de Lost foi um dia em que eles foram jogar golf, ali naquela hora parecia que estavam livres do peso da prisão e da necessidade que nunca os abandonava de sair dali.

    bjs
    😉

  • Sarah K

    Nossa,agora que eu vi, vc tirou meu link…
    Zangou comigo, foi?? Rss

  • O que vem por aqui? « Perca-se

    […] de areia. Entre a ficção dos mapas, teorias, identidades e conceitos que criamos sobre a vida e a ficção dos sonhos que vivemos, prefiro me perder nestes […]

  • Meiri

    “Mas liberados de quê? Da ilha, dos problemas, dos outros? Não. Da contração que agora os aflige, da cegueira, do esquecimento. ”

    De repente,me lembrei dos banquinhos do esquecimento que existem no reino do Grande Hades. Será que na verdade já não cruzamos todos o tal Rio Estige e nos esquecmos de quem somos?

    Que a primavera traga Persefone de volta para acordarmos da delusão.

  • “I’ll be there for you…” Alguém ainda acredita no Bon Jovi? | Não Dois, Não Um: Um blog sobre relacionamentos lúcidos

    […] que construímos algo sem perceber, ou seja, sempre que entramos num filme sem perceber que é um filme, nos tornamos vítimas fáceis do sofrimento. Cobrar sem saber que está cobrando é como sair de […]

  • bruno

    Por quantos papéis e personagens passo durante a minha vida? Ao fazer o que tu propos, e lembrar como era “eu” antes da minha condição atual, me deparo com um simplicidade muito boa. Muitos sofrimentos e alegrias indescritíveis, que hoje são rarefeitos, leves e quase sem sentido. O que me deixa curioso é o seguinte: Se acredito enteder este processo, por que sempre vejo a realidade como algo sólido e rígido? E por que, ao pensar nisso novamente, vejo que tudo de fato não passou de cenas e papéis que não mais interpreto?? Complicado rsrs.

  • O fim de LOST e a segunda-feira de nossas perguntas | Papo de Homem – Lifestyle Magazine

    […] escrevi dois textos com esse foco: “Sobre chão e nuvens: Lost e o sentido da vida” e “LOST: fim da 4a. temporada (ou como acabar com qualquer briga de casal)”.Por outro, minha conexão se dá pelo mistério e pela ausência de substancialidade dos elementos […]

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