Liberdade, profundidade e presença (para homens) – Parte 2

por Gustavo Gitti 5 outubro 2007 3 comentários

Continuo meu comentário sobre a pergunta do leitor Fernando. Para quem não leu, a primeira parte fala sobre liberdade. Assim como tentei explorar a noção de liberdade pela imagem do horizonte, limite da ação, falo aqui de profundidade usando a metáfora dos mundos, base da ação.

Profundidade

Meu mundo. De onde eu ajo? Onde estou pisando? Minha profundidade nada mais é do que a base de minha ação.

Neste exato momento, 256.865 pessoas jogam Poker online, 7.724.843 ensinam crianças a escrever, 14.760 compõe melodias no piano e 941 meditam em silêncio contra a parede. Mais de 99% do mundo nos passa desapercebido simplesmente porque estamos muito ocupados com nossos próprios dilemas. Somos escravos de nossas preferências (“gosto” e “não gosto”) e sequer lembramos como tais personagens se formaram ou quando assumiram o controle de nossa mente. Somos marxistas, palmerenses, contra pena de morte. Gostamos de Seinfeld, odíamos acordar cedo. Essa fixação a certos referencias nos deixa encapsulados e limitados a um número específico de ações, em contato com uma quantidade muito pequena de seres e universos, incapazes de acessar outras práticas, modos de ser, sensações, emoções, visões. Há um vasto mundo fora de nossa mente!

Um exemplo. Estou preocupado com meu trabalho, alguns números, uma apresentação importante, falhas no sistema de gestão de projetos. Meu amigo me liga contando de sua viagem para a França, fala de seu deslumbramento amoroso, ri alto ao descrever suas histórias. Mas o que é mesmo a França? Em meu mundo atual, esse país não existe, assim como uma risada ou a mera idéia de algum deslumbramento amoroso. Meu próprio amigo não existe. Meu horizonte termina antes. Meu mundo não tem espaço para nada disso.

Alguém pode ser considerado superficial por não se aprofundar em nada, mas esse sentido convencional (focado no objeto) não é tão interessante quanto a idéia de superficialidade como sendo uma restrita espacialidade do sujeito. Se prestarmos atenção no que estamos tentando expressar quando dizemos que alguém é superficial, veremos que criticamos o tamanho de seu mundo, não sua capacidade de análise. Isso explica por que existem pessoas extremamente profundas que são iletradas e pouco inteligentes. A pergunta correta é: qual o tamanho do mundo em que você vive?

Alan Wallace sempre recorre a essa frase de William James: “For the moment, what we attend to is reality”. Ou seja, nosso mundo é do tamanho do nosso foco de atenção. É como se nossa consciência flutuasse por diferentes níveis de percepção que desvelam diferentes níveis de realidade (o que Ken Wilber chama de “centro de gravidade”).

“Macbeth exists, but not for my dog. Cells with DNA exist, but they can only be seen by subjects using microscopes […] Nirvana exists, but not for a dualistic state of consciousness, and so on. Phenomena ex-ist, stand forth, or shine only for subjects who can enact and co-create them.” (Ken Wilber)

No entanto, isso não significa que nossa realidade sensorial é apenas uma alucinação, ou que carregamos um mapa mental com interpretações subjetivas de um universo exterior comum a todos. Essas duas visões são extremas: uma nega totalmente o mundo exterior, a outra afirma sua solidez com ingenuidade. Uma visão mais interessante apenas acrescenta uma frase ao senso comum: nós estamos dentro do mundo tanto quanto o mundo está dentro de nós. Ora, quando nos relacionamos com alguém, de fato não estabelecemos contato lá fora, mas com a pessoa que surge em nosso mundo, em nosso espaço sensorial. Para testar essa idéia, passe uma semana se relacionando com a imagem de alguém em sua mente (listando as qualidades positivas, por exemplo). Depois, encontre-o e veja como a relação mudou, como a pessoa surgirá de outra forma para você. Se listar as qualidades negativas, criará e se relacionará com um monstro – e a outra pessoa vai agir como tal! Se listar as positivas, ela lhe parecerá muito mais simpática… O outro nos constrói e é por nós construído. Se assim não fosse, nunca teríamos registros dos famosos casos de velhos amigos que de um dia para outro se apaixonam.

O outro talvez esteja mesmo dentro de nós e por isso conseguimos sentir o que ele sente, ver o que ele vê, ouvi-lo sem que ele fale. Porém, como a origem das alegrias é sempre a mesma das complicações, temos aqui um grande problema! Se nosso mundo não tem espaço para o outro, a relação é impossível ainda que ele esteja bem à nossa frente. Ele vem com suas visões, ações, maneiras de agir, histórias, emoções, palavras, sons. Quanto disso tudo cabe em nossa percepção? Quando ele nasce para nós, ele está inteiro ou está com apenas 10% de si? Sem querer, mutilamos muita gente. Não oferecemos vastos espaços emocionais e cognitivos para que outros possam se apresentar. Nosso ambiente é estreito demais para validar fenômenos de outros mundos.

Enquanto muitas pessoas deixam 90% de si em casa porque sabem que não serão vistas se saírem completas aos encontros, existe também o processo inverso: o outro vê 1000% e mais um pouco! Qualquer pessoa apaixonada conhece bem a sensação de expansão de mundo que ocorre apenas pela presença do parceiro. O outro se aproxima e eu começo a ver o que antes não via. Isso ocorre porque nós não andamos todos em um só mundo. Nós andamos em mundos. Quando conhecemos alguém, somos iniciados em um universo completo de árvores, carros, ruas, pensamentos, janelas, barulhos. O outro não vem trazendo dois olhos, uma boca, duas pernas e algumas idéias novas. Não, o outro vem, traz seu universo inteiro, coloca dentro de você e então, magicamente, você começa a ver novas coisas lá fora. Ele coloca uma lua que não tinha e a aquela lá longe no céu começa a parecer diferente. O universo dele também inclui uma nova pessoa igualzinha a você. É com essa pessoa que ele vai se relacionar quando se dirigir ao seu corpo. Ele vai acolher, com um sorriso, 100% de tudo o que você é e já foi. Todos os erros, acertos, problemas e virtudes. E ainda vai deixar um longo espaço para você ser mais, existir mais. Um abraço no seu passado e uma condução para seu futuro. É assim que ele vai construir você. De repente, você fará algo que nunca se imaginou fazendo, sentirá sutilezas nunca acessadas, ficará imersa em um frescor que lhe deixará renascido. De fato, você terá nascido de novo.

No momento em que nascemos para alguém e renascemos para nós mesmos, um processo delicioso e cruel se inicia. Começamos a compartilhar mundos e construir sensações, objetos, identidades ali dentro. Vemos filmes, costuramos histórias, recontamos nossa vida inteira (para que ela possa ganhar outras cores aos olhos do outro), colecionamos orgasmos e compramos juntos uma máquina de lavar roupa. Sentimos que aquele novo personagem é, enfim, nosso verdadeiro eu! Tudo dentro do nosso mundo compartilhado. Angelical, inesquecível, apaixonante… até a crueldade aparecer. Basta um “Cansei! Não quero mais ficar com você”. O outro nos abandona e se vai. Mas ele não leva apenas seu corpo para fora do nosso mundo. Ele leva filmes, orgasmos e CDs. Ele leva nossa história de vida recontada e o universo inteiro no qual nós estávamos morando! Mais ainda: ele nos leva embora de nós mesmos, destroçando nosso “verdadeiro self” que demoramos tanto para encontrar. Ele nos mata e retira cada objeto do nosso universo. Depois de nos esvaziar completamente, não precisa de ninguém para apagar a luz. Não sobra nada. Nós andamos no mundo que está dentro de nós, não é mesmo? Nada dentro, nada fora. Em dias de depressão pós-divórcio, parece que até mesmo a luz do Sol foi tirada de nós.

Mundos e identidades interpenetradas. Somos profundos ou superficiais na medida em que nos comportamos dentro desse processo de nascimentos e mortes. Em outro texto, eu disse que o abismo interior masculino é a profundidade da entrega feminina. Essa entrega não é apenas das mulheres. Nossa profundidade é o espaço que o universo tem para nos invadir com seus ruídos, com suas artes e movimentos. Nosso mundo interno tem as mesmas dimensões da realidade que surge aos nossos olhos. O mundo – ou uma mulher – nos entrega exatamente aquilo que podemos abraçar.

No lugar em que você vive, quantas pessoas jogam Poker? Quantos meditam contra a parede? Qual a população total? Quantas pessoas estão tendo orgasmos agora? Quantas pessoas nascem completas, sem mutilações? Qual o tamanho do seu mundo?

Prática inicial

O treinamento em profundidade pode ser dividido em duas camadas. Na primeira, trabalhamos com nossas identidades e mundos diretamente, por dentro e por fora. Na segunda, ignoramos identidades e mundos e vamos direto à base.

A prática da primeira camada é a mais simples. Sabendo que nosso mundo interior é precisamente o universo todo que aparece ao nosso redor, temos duas direções possíveis para expandir nossos mundos. Para expandir nosso espaço interior, desbravamos todos os locais fora de casa: viajamos para outros estados e países, entramos em bares e casas, conhecemos pessoas diversas, conversamos com pacientes terminais, caminhamos pelas ruas e feiras de um bairro distante. Para aumentar nosso mundo externo, exploramos nossa própria mente: ouvimos músicas, lemos todos os livros que encontramos, imergimos nas artes, aprendemos linguagens, construímos labirintos de pensamentos, decoramos pequenos poemas. Um bela praia, a mente ganha vastidão. Um filme profundo, a realidade inteira muda. Como a causalidade é mútua, atuamos dentro para mudar fora, e fora para mudar dentro.

Por mais fascinante que seja o desbravamento de realidades interiores e exteriores, isso não tem fim! Chegará um momento em que a multiplicidade de experiências não mais conduzirá a um aprofundamento de nosso centro de gravidade. O mundo se amplia, sim, e com ele nossa confusão e dispersão. A fonte autêntica de profundidade não é nenhuma experiência privilegiada, mas a própria fonte de experiências e mundos. Por mais amplo que nosso mundo possa ser, sempre terminaremos por mutilar outros seres. Para oferecer espaço a qualquer experiência, nosso centro de gravidade não pode estar vinculado a um mundo específico. Temos de manter um pé dentro e outro fora do mundo.

No treinamento em liberdade, a meditação ajuda a superar os automatismos e as respostas condicionadas. Da perspectiva da prática da profundidade, a meditação promove o fortalecimento de nossos pés em uma base anterior às complicações. Um homem profundo não está no mundo tanto quanto o mundo está nele. Sua âncora é o próprio espaço. Livre de um mundo específico, ele pode habitar ou receber qualquer mundo. Pois é isso que acontece em qualquer relação: oferecemos nosso mundo enquanto gentilmente adentramos o mundo do outro.

Qual mundo você oferece às pessoas que conhece? Em qual mundo você as faz nascer? Em qual mundo elas convivem com você? Quais áreas dos outros você não consegue tocar? Um homem superficial vive em um mundo com 13 ou 14 pessoas, mais os jogadores de seu time de futebol. É só isso que ele tem a oferecer e é somente tais territórios que ele percorrerá nos outros. Quando os pais de sua esposa morrem, o homem superficial não sabe bem o que dizer. Por outro lado, um homem profundo vive em um mundo com 6 trilhões de seres. Se as coisas vão mal para ele, há mais de 5 trilhões de seres com os quais se alegrar. Quando os pais de sua mulher morrem, esse homem tem ao seu lado todos os grandes sábios da humanidade. Em sua mente, se encontram visões budistas e toltecas, existencialistas e spinozanas. Com sua simples presença, o homem profundo adiciona riqueza e vastidão a qualquer acontecimento. Quando o procuram, as pessoas não querem conselhos, elas querem apenas que o acontecido exista em um universo amplo. Elas mesmos querem existir em tal universo profundo e por isso se apresentam a ele.

Quanto mais profunda for sua base, mais eventos e seres poderá abraçar. Quando outros precisarem de sua ajuda, quanto maior seu mundo, mais saídas, novas identidades, esconderijos e abrigos você poderá proporcionar.

Contemplação em três tempos

Que a prática comece agora. Colocamos Bach para tocar: Ária da Suíte Nº 3 para Orquestra. Uma versão diferente, seja no violoncelo, no violão ou na voz de Bobby McFerrin. Sentamos e respiramos pelo abdômen. Todo o nosso passado começa a passar como um filme na mente. O dia de ontem, meses atrás, nossa infância, cenas que nunca vamos lembrar, flashes do que não vivemos, o passado antes de nosso passado, as décadas, os séculos. Viramos animais, células, átomos. Big Bang. Antes do Big Bang… Nossa mente contempla e inclui tudo. O passado se desenrola em nosso espaço. Tudo é quase inexistente de tão límpido.

A próxima música é de Wim Mertens: Struggle For Pleasure. Agora é o presente que se mostra e se desfaz. Uma tensão entre movimentos rápidos e lentos faz surgir todas as imagens de nosso mundo atual: o pessoal do trabalho, a namorada, os amigos da Internet que você nunca viu, as guerras do outro lado do planeta, os atores da TV, sua família, seu vizinho que você não conhece. Você olha com olhos de extraterrestre para cada detalhe. O movimento é frenético, nada permanece. Há apenas espaço… e música.

A terceira contemplação acontece ao som de Lotus Feet (com o grupo Shakti ou com Paco de Lucia), de John McLaughlin. Nós já não estamos em um mundo. Como uma flôr de lótus invertida, nossos pés se sustentam em uma espacialidade infinita e nossas mãos tocam as sujeiras do mundo. Olhamos para todos os lados e os mundos seguem rodopiando dentro da mandala da confusão. Cada um com uma história de vida, amor e morte. Nosso futuro e nosso passado acontecem simultaneamente nesse espaço. Nós somos o deus que segura cada universo em sua própria mão. Somos o deus que destrói e o deus que faz nascer.

Quando a música acaba, podemos continuar brincando de deuses da vastidão. Cada ser que passar por nós receberá um espaço no qual ele poderá se esticar inteiro, um vazio que pedirá para ele se descobrir assim também, pura abertura. Nosso presente será em forma de novas visões, novos universos, linguagens, construções. Será em forma de poesia e vai encher de detalhes as experiências mais comuns. Ao agir a partir da base, ofereceremos densidade. Por não estarmos localizados em nenhum mundo específico, nosso pé pra fora concederá ares de mistério não só a nós como a tudo o que presenciarmos. Mas nosso presente não será nada disso! Vamos nos abrir e deixar o outro entrar, inteiro. E vamos penetrar o outro por completo. Nosso presente será a profundidade desses dois mergulhos.

Continua…

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3 comentários »

  • myla

    dessa vez, comento apenas a música. as demais já as conhecia, mas essa q está no seu blog, do grupo Shakti, foi o presente d espacialidade do dia. divino, Gu!!!

  • Luide

    🙂 Depois de ler este texto, lembrei-me do último verso do poema Canto Esponjoso de Carlos Drummond de Andrade: “Vontade de cantar. Mas tão absoluta que me calo, repleto.”

  • ...

    um tanto de “amelie poulain” nesse texto…
    adorei o texto!
    muito bom mesmo

    parabéns

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