Entre teoria e prática: por que ler ou escrever sobre relacionamentos?

por Gustavo Gitti 29 junho 2008 20 comentários

Lousa de Einstein

“Cada vez que leio mais e mais textos explicando/apontando/avaliando a respeito da relação homem/mulher, mais percebo que colocamos imensas cargas sobre algo que deveria e poderia fluir com naturalidade.

Joguinhos psicológicos, manuais de relacionamento, textos explicativos, enfim, será que realmente se precisa disso tudo? Será que uma mulher ou até mesmo um homem, porquê não, precisam disso tudo?

Eu acho que não. Amar e ser amado é muito mais vivência do que teoria.”

–Luana (em comentário ao post “Se você deseja que sua mulher seja uma puta na cama…“)

Luana, concordo 100%. Tanto que uma de minhas músicas preferidas é “Why?”, do Us3 (leia a letra). Adoro a levada de bateria dela também. Muito groove.

Como ia dizendo, justamente por concordar com você (não apesar disso), eu não vejo teoria, carga ou manuais em lugar algum. Explico abaixo. Enquanto lê, dê play e ouça “Why?”.

Toda teoria é uma forma de prática

Por que escrever, pensar e ler não seriam outra formas de viver? Por que não fazer filosofia de ressaca, depois de uma puta noite dos 5 sentidos? Por que não falar, se podemos falar sobre o que vivemos ou desejamos viver? “Viver o momento”, a prática do Carpe Diem, não inclui ler, pensar e refletir?

A noite flui com naturalidade, o texto flui com naturalidade, a leitura, os olhos, o blog, o monitor, o livro, as palavras, seu comentário, as linhas de sua face enquanto escrevia, você, eu… tudo flui com naturalidade. Onde mesmo está a carga a que você se refere? Mesmo quando as coisas parecem travar, mesmo o desconforto, o erro, a tensão, mesmo quando tudo parece forçado, eis modos específicos de fluir com naturalidade.

A vida não cessa. Ainda que algo pareça inerte, não há ponto algum nas dez direções que não esteja vivo e se movendo. Ainda que tentemos fingir ou nos mascarar, estamos sempre expressando quem somos, não por trás das máscaras, mas pelo próprio fato de usá-las.

Onde estão os joguinhos, cadê os manuais? A didática de um texto, os tópicos, itens, conceitos numerados e frases em negritos são elementos imanentes ao universo da leitura, o desdobramento espontâneo dessa linguagem. Se tentamos transpor linguagens e aplicar o que lemos ao que vivemos, fracassaremos. Como beijar com palavras ou sentir com conceitos?

Se lemos um texto como se fosse um manual, se o vemos como apenas texto sem vida, isso é falha de nosso olhar, obstáculo nosso. Um beijo se beija, um texto se escreve e lê. Não procuramos uma coisa em outra.  Cada coisa é vivida como tal. E ao fazê-lo, descobrimos que tem todo um mundo por trás de cada beijo, assim como um texto esconde – ou, para quem sabe ler, expressa – muita vida.

O amor pode se viver em qualquer linguagem. Em corpo, pode ser abraço ou tapa, pernada ou giro. Em som, “Walking After You” ou “Crazy“. No cinema, Amor à Flor da Pele ou 2046. Em palavras, às vezes vira poema, às vezes livro sobre relacionamento. A dor também pode viver em qualquer linguagem. Podemos chorar, urrar, pintar, esculpir ou escrever de dor. Um de meus posts mais lidos brotou da dor e, contrariando minha proposta de filosofia de ressaca, foi escrito durante o momento, não após.

Ciência do milagreA especificidade de cada linguagem não impede a mútua fecundação. Assim que beijamos, surge vida dentro de nós. Vida que pode se expressar por palavras perdidas em blogs. Quando lemos um texto ou saímos de um bom filme, surgem possibilidades, potência, vontade de vida. Logo depois, surge um outro beijo, um beijo que se fez possível pelo texto, pelo filme.

As equações que se propõem a explicar os relacionamentos tem um algoritmo de milagre, uma variável imprevisível [veja a imagem ao lado]. Em um texto sobre o amor, é aquilo que não está na palavra que a permite e sustenta. Mais ainda, o texto amoroso nunca é explicativo. Ele é a fala do enamorado, discurso do desejo, vontade de conseguir ou prolongar o próprio amor descrito.

Onde há palavras, há vida como palavras. Onde há os cinco sentidos, há vida como cinco sentidos. Tudo é, já, desde sempre, vivência. Até mesmo a teoria (já dizia o biólogo Humberto Maturana) surge da prática da teoria, do teorizar. Tudo é prática.

É claro que existe o que chamamos de “abismo entre teoria e prática”. Mas na verdade há uma ruptura ou falta de comunicação entre dois tipos de prática: pensar e sentir, teorizar e se mover, usar a mente e usar braços, pernas, pele. Um exemplo é o médico que fuma. Sua mente e pulmões (além da esposa) conhecem os males do cigarro, seus braços não.

Não há problema com esse abismo. Uma parte também pode levar a outra em direções positivas. De fato, às vezes a vida começa com uma palavra, um sonho, um “e se…” puramente mental. E então, ao escrever, terminamos por antecipar e construir aquilo que vamos viver. Isso já aconteceu comigo neste blog e por isso abri a seção “Amores possíveis” (só com um post por enquanto), onde vou imaginar aquilo que pode ser vivido.

Sobre isso, certa vez pensei em um hai-kai:

Palavra verdadeira
aquela que fura o papel.
E atrás, o real

A história da filosofia comprova que a boa teoria não é a que melhor descreve a realidade – e nem deveríamos esperar isso delas! A boa teoria retira suas próprias palavras, abre um vão dentro de si, fura o papel para que possamos ver. Palavra virtuosa é aquela que se desfaz em vida. Conselho bom é aquele que esquecemos.

Quando o crocodilo de Escher está no papel, o que é ele senão um crocodilo? Quando ele sai do papel e ganha mais uma dimensão, o que é ele senão um crocodilo? Ou seja, qual é mesmo a diferença entre amor escrito e amor vivido?

M.C. Escher
Reptiles
(1943, litografia), M.C. Escher

“You Have to Say Something”

Sabe, ontem tive uma das noites mais lindas de toda a minha vida. Dancei com uma princesa que veio da França (mas pensa que é apenas uma cidadã paulistana). Brincamos, rimos a noite inteira. Sem joguinhos, sem manuais, sem explicação. Eu segui seus conselhos, Luana, fiz como mandou: dispensei cargas teóricas, flui com naturalidade. Os especialistas em sedução apontariam vários erros em mim, pois eu sequer a beijei, ainda que tenha passado a noite toda colado nela, quase dentro.

Fiquei ainda mais feliz porque ela raramente acessa a internet e não sabe deste blog. O olhar dela, portanto, me liberava de mim mesmo, via um Gustavo além daquele que eu estou cansado de ver. E, assim, eu agia como esse Gustavo recém-nascido. Ontem eu me surpreendi comigo mesmo, surgindo completamente outro aos olhos franceses. Mal sabe ela, mas ontem ela me nasceu.

Tem um mestre zen, Dainin Katagiri, que escreveu um livro chamado Retornando ao Silêncio. Acho que ele concordaria com você: menos palavras, mais vivência. No entanto, olhe só o título de seu outro livro: You Have to Say Something (“Você Tem de Dizer Algo”). 😉

Eu ouço muitas reclamações, eu vejo problemas por aí. Eu sinto dores. Há confusão onde poderia passar lucidez, contração onde poderia repousar o gozo, hesitação onde poderia fluir leveza. Portanto eu tenho de dizer algo. O pouco que tenho, ofereço. Por que não? Esperar pra quê? Se nunca teremos 100% de sabedoria, sempre estaremos na situação em que já estamos: temos algo. Assim, até o mais tolo tem algo a oferecer. Sempre.

Por fim, tenho uma pergunta a lhe fazer sobre o seguinte trecho do mestre Caeiro:

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Por que será que ele (Caeiro ou Pessoa, você escolhe) escrevia? Se pensar é não ver, o que fazia ele escrevendo?

Beijão e obrigado pelo comentário!

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Há algum tempo parei de escrever no Não2Não1 e comecei a agir de modo mais coletivo, visando transformações mais efetivas e mais a longo prazo. Para aprofundar nosso desenvolvimento em qualquer âmbito da vida (corpo, mente, relacionamentos, trabalho...), abrimos um espaço que oferece artigos de visão, práticas e treinamentos sugeridos, encontros presenciais e um fórum online com conversas diárias. Você está convidado.



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20 comentários »

  • Mulher Solteira

    Gustavo, leu o “Amores silenciosos” do Calligaris na Folha desta 5a? Vale a pena.

    Beijão.

  • Gustavo Gitti

    Li, claro, e enviei para mais de 100 contatos. Calligaris é gênio e o dessa semana me deixou atônito, texto acima da média (e a dele é bem alta já!).

  • Ka

    Que texto mais verdadeiro, sútil e profundo…, acho que a arte de viver está nisso deixar fluir sem estancar, sem temer o certo e o errado, porque afinal o que é cada um deles?
    Lindo teu comentário…”ontem ela me nasceu”…raríssimas pessoas tem a ousadia e segurança de se deixar nascer novamente, a passagem estreita assusta, mas a luz e a vida nova sempre valem a pena.
    Mais um prazer ler algo inspirador e tão poético no sentido de vivência e não utopia.
    bjka

  • Jazz

    Sim, falar, ler, tocar, beijar são formas de praticar; assim como escrever.

    Concordo com os dois, tanto com a leitora quanto com o Gitti, que a cada dia que passa, cativa maia a minha admiração de observadora.

    Pessoa é TUDO.

    Palavra verdadeira
    aquela que fura o papel.
    E atrás, o real

    E esse hai-kai é a tua cara, Gustavo 😛

    Aproveita essa “sorte” 😉

  • Nati

    Lindo mesmo..Eu como pessoa que adoro falar o que vivo e repetir, e pensar, e analisar, e planejar as coisas que vivo, nem que seja pra rir depois por que tudo mudou de rumo, acho que teoria e prática tem toda uma importância!

    E ler certas coisas nos faz refletir, pensar no que não foi pensado, e depertar vontades de faezr oque não foi feito!

    Que os blogs existam sempre!

  • juliana alves

    moça sortuda essa “francesa”, hein?

  • Thiago dos Reis

    Mas, que seria da prática sem a teoria?

    Se não fossem as teorias, não existiriam os livros de matemática, física, gramática, etc. E a matemática se difere do amor? Ora, são duas ciências. Nós não tocamos os números, não tocamos o amor. Tocamos corpo, pele..

    No fundo, no fundo.. acho que o amor é uma crença.

    Excelente post, mais um que ganha a estrelinha do
    Google Reader. Abraço!

  • Jazz

    A gente escreve porque só sentir, não é o suficiente 😉

  • Roger

    Gustavo você poderia me enviar este texto do Calligaris?

  • Gustavo Gitti

    Roger, enviei já. Abs!

  • Adriana

    Gustavo:

    Foi impossível ver a imagem construída neste link e não comparar ao seu blog. Ele seria a representação gráfica do que você faz, só que você desenha a mulher de dentro para fora com as palavras…

    http://fcmx.net/vec/v.php?i=003702

    Um grande abraço.

  • Gustavo Gitti

    Adriana, uau! Isso me lembrou a visualização que alguns monges fazem para evitar contato sexual: lembram que a mais gostosa das mulheres é, na verdade, pele e osso.

    Beijo!

  • Carol

    Esse texto me lembrou as inúmeras e intermináveis cartas de Abelardo e Heloísa, que se amaram profundamente na teoria e prática. E dentro do que idealizaram no platônico viveram uma relação tão profunda quanto dissoluta. Muito bom mesmo, Gustavo. Não conhecia esse espaço, mas muito provavelmente, vou “invadi-lo” inadvertidamente e não raramente.

  • Caio

    É engraçado como eu vejo as coisas muito parecidas mas de uma forma bem diferente.
    Como estou muito acostumado a numeros, pra mim tudo é um numero é um fator, quem gosta de matematica sabe que 1+1 pode ser 2.
    ou seja na teoria você tem os paradigmas e as diretrizes, na prática você tem a liberdade de tranformar aquele 2 em 0.
    E nos somos meros números, e pode-se fazer mágica com eles.
    Eu acredito que exista sim uma fórmula, mas dentro dela você pode fazer acontecer o que quiser até errar é possivel.
    Grandes filósofos antigos foram grandes matemáticos.
    tudo é tão exato que chega a ser inexato.
    Me fiz entender ou viajei d+?

  • Khandinho

    Deixar fluir, como a água, sem saber aonde vai… ou o que te espera e de tal forma viver mais livremente.

  • P.

    Acabei de ler o seu post mais lido, que vc comenta acima…
    PERFEITO! Eu jamais saberia explicar pra ele, que ele faz exatamente isso! Mesmo porque, se eu falar, ele não vai me ouvir..Dá vontade de imprmir e mandar pra ele ler! Assim não precisaria falar mais nada! Basta!
    Adorei!!!
    bjs

  • Rafa

    Achei muito interessante você deixar de lado os “joguinhos e manuais”. Ser natural que é gostoso.

  • Guima

    Hey Gustavo!

    Você viu que tem mais fotos novas do Blogs na Cozinha no Blog?
    Ah, tem também as receitas dos risotos da Lu com vídeo explicativo!

    Cata lá!
    http://bgourmet2008.wordpress.com

  • Xu

    “O pouco que tenho, ofereço. Por que não?”
    Lindo seu texto.
    Admiro conseguires misturar tantas áreas da vida em uma só (o que de fato é!!!) experiência, a sensação, e torná-la divina.
    A meditação, o conhecimento, auto-conhecimento, relacionamento, sexo… nada se separa.
    Seu blog me lembra de viver.

    Beijos
    Xu

  • Andrea Bonfim

    “Ontem ela me nasceu”… Corajoso você, moço!!! É preciso uma boa dose de coragem, ousadia e entrega, para deixar o outro nos nascer.
    Valeu por mostrar que quando nos permitimos (e damos esse presente a alguém) nos “liberamos” para que um “ser outro” abra-se em nós.
    Concordo com a Xu. Você não só “nos lembra de viver”, como sua escrita transforma-se em prática, na doce medida em que desperta na gente uma vontade bonita de (Re)nascer para o desconhecido…

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