Do vazio às formas

por Gustavo Gitti 22 maio 2006 7 comentários

Escrito por Jessica Sato, uma grande amiga.

O vazio:
Ele não existia para ela, e nem ela existia pra ele. Tudo podia acontecer, ou não acontecer. Eles podiam existir um para o outro de infinitas formas e podiam não existir.

As formas:
Ela foi transferida para o escritório onde ele trabalhava. Ela disse muitos “Bom dia! Muito prazer” no seu primeiro dia de trabalho. Mas o “Bom dia! Muito prazer” que ela falou pra ele foi um pouco diferente. Não foi só o olho dela que brilhou refletindo o brilho dos olhos dele, nem o sorriso que quase escapou da boca dela. Mas foi aquela coisa que brota quando alguém olha pra alguém e se vê magnificamente refletido no olho do outro.

Não demorou até ela descobrir que ele faz ótimas piadas. E não demorou pra ele descobrir que a risada dela é muito gostosa. Não demorou até pegarem o elevador juntos e ele descobrir que a casa dela era caminho pra chegar na casa dele. Não se demoraram muito na primeira carona. Mas depois algumas, eles decidiram se demorar num barzinho antes de se despedir.

Das mesa de bar dos dias de fim de expediente até as mesas de bar das noites de fim de semana surgiram algumas piadas que eram só dele pra ela. E ela ria com uma risada que era só dela pra ele. E das risadas e piadas na mesa de bar, surgiu um beijo.

E desse beijo surgiram outros. E dos outros mais outros tantos.

No começo de um beijo ele piscou bem perto dos olhos dela e os cílios deles se fizeram cócegas, e eles inventaram o Beijo Borboleta. No meio de um beijo eles saíram correndo do bar, entraram em casa e se trancaram no quarto. E no fim de um beijo ela olhou pra ele e riu uma risada boa, sem ele ter contado nenhuma piada.

Mas, num outro dia, ela não riu… mesmo depois dele ter contado um monte de piadas. E em outros dias, o “Bom dia” que ela dizia pra ele já não tinha muito prazer. Até que num fim de dia quase noite ele foi embora de carro do escritório e ela foi embora a pé.

Nos dias seguintes, ao se verem no trabalho, eles se desejaram bons dias. Antes não o tivessem feito, porque de nada adiantava. E os dias deles estavam sendo dos maus aos piores de suas vidas.

O vazio das formas:
O vazio que sentem agora é o da falta daquilo que já foi. Ela sente falta da risada que dava e ele sente falta das piadas que fazia. Talvez ela perceba que não é dele que ela sente falta, mas dela mesma na presença dele. Talvez ela perceba que não era dos olhos dele que ela gostava, mas do reflexo dela nos olhos dele. Talvez ela se arrisque a olhar os olhos dele buscando ver simplesmente os olhos dele. E talvez ela consiga.

O vazio:
E ela vai sorrir, sem precisar de piadas ou beijos, por ter simplesmente descoberto ele. O ele antes dela, o ele antes dela nele e dele nela. O ele livre. O vazio que é ele.

O vazio como aquilo que dá a liberdade dele ser as piadas conhecidas nos bares usuais; assim como dele ser infinitas piadas novas em inúmeras mesas, cadeiras, balcões de bares, casas, escritórios e elevadores; bem como dele não ser nada disso.

Se ele é esse vazio livre, ela pode acabar descobrindo ela mesma, também é vazia e livre. Livre para rir do jeito que ria pra ele, assim como para rir de outros jeitos que nunca imaginou, gargalhar sozinha, ou com um desconhecido, ou ainda que ela pode nem mesmo esboçar sorriso.

Ela pode ir mais longe e descobrir que foram os vazios infinitamente livres de cada um deles que, juntos, criaram as piadas e as risadas; que, juntos, criaram o Beijo Borboleta.

E aí eu já não sei mais o que pode acontecer. E nem eles. Só que o que eles irão saber é que são vazios e livres para se criarem e recriarem um para o outro e os dois para o mundo. E só o que eu posso dizer é que seria uma pena que o Beijo Borboleta deixasse de existir.

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Para transformar nossas relações

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7 comentários »

  • Gustavo

    Adorei esse movimento que você fez. É como no zen: primeiro são montanhas, depois deixam de ser montanhas e depois voltam a ser montanhas.

    Você aplicou o processo da iluminação à relação a dois. Primeiro, ela fica com ele por aprisionamento e condicionamento. Depois ela se descobre livre para ficar com qualquer um e viver qualquer coisa. E somente então, dessa liberdade de infinitas possibilidades, pode voltar a ficar com ele, agora por liberdade.

    Como me disse alguém que eu amo: “vou aprender a nascer sem você, para você”. O “sem” simboliza o segundo movimento (“deixam de ser montanhas”), o processo de liberação, e o “para” simboliza o retorno à forma, agora vista como manifestação desobstruída da vacuidade, da liberdade. Luminosidade incessante, espontânea, lúdica.

    Né não? 😉

  • betha

    Com que delicadeza voce consegue mostrar que o magico do amor é aquele “magico” que ja existe em nós e que em algum momento nos permitimos compartilhar. Acho lindo poder ver que o amor tem que existir em nós para que possa ser compartilhado. Nooossaaa… fico emocionada com seus textos…
    continuuueeeeee
    bjos

  • Milene

    Gustavo,

    Algum tempo venho lendo suas linhas tão bem traçadas e tão bem abertas.
    Mas hoje ao ler este texto. Me emocionei. Por perceber como é bonito o ato de encontrar. Esse encontro que sempre é regresso para nós mesmos. Abertura para ser um “outro” diante daquele que nos toca. A mágica do encontro permanece mesmo após o “final”.
    lindo lindo.

  • Milene

    hehehe

    Desculpa o erro … ahaha esse texto na verdade é dá Jéssica Sato.

    hehehe

  • fabio

    Eu queria que isso acontecesse comigo.
    Mas realmente nunca irá acontecer.
    Porque eu não tenho sorte com isso.

  • lorena a.

    Amei! Reflete com precisão a vacuidade das relações. A essência do Zen. Parabéns, Gustavo!

  • Gustavo Gitti

    Lorena, o texto é da Jessica, amiga querida que convidei para escrever aqui quando iniciei o blog.

    Abraço!

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